Por Andriolli Costa e Leonardo Tremeschin
Quadrúpede na aurora, alto no dia E com três pés errando pelo inútil âmbito da tarde. Assim veria a eterna esfinge a seu instável irmão, o homem. (…) Somos Édipo e, de um modo eterno, a longa e tríplice besta Somos tudo o que seremos e que temos sido. Jorge Luis Borges |

Três.
Na terceira e última etapa do enigma da Esfinge que assolava Tebas, encontramos a nós mesmos, apoiados sobre o cajado do ancião para enfrentar a gravidade que nos convida ao solo. Não é o fim, mas uma síntese; um número que se insere entre a primeira infância e a adultez. É o três esse ciclo fechado, como um triângulo cujas retas e ângulos são minimamente dispostos de modo a criar uma forma completa.
Mas, como alerta Borges, esse não é o único sentido do número no mito de Édipo. A própria criatura o carrega em seu corpo; parte mulher, parte leão, com asas de águia para singrar os céus do pensamento. Se no enigma devorador temos o homem, a esfinge traz o feminino. Responder ao seu questionamento é enfrentar o próprio Eu.
E ai de quem errar.
Nas tramas do destino que nos levam para esse embate encontramos as mãos das três fiandeiras – a avó, a mãe e a filha, ávidas por cortar a linha trançada, metonímia da vida. Todo cuidado é pouco, um pecado de sangue pode despertar a fúria das “Bondosas”, e não haverá eufemismo capaz de aplacar o castigo destas três irmãs, flagelo dos mortais.
Os sentidos que levam os números variam no imaginário coletivo. O olho único, por exemplo, é índice de bestialidade, visão ciclópica daquele que não é capaz de distinguir certo e errado, amigo de inimigo. O terceiro olho, por sua vez, traz a vidência. A transcendência daquilo que se mostra de imediato, que revela aquilo que se oculta a olhos vistos. No meio do caminho, estamos nós.
O número também figura repetidamente nos contos populares. São três cachorros encantados que acompanham o herói; três filhos de um monarca que devem percorrer o reinado para provar quem é o mais justo; três desafios a serem vencidos até que o prêmio possa finalmente ser conquistado. O motivo está no cerne da estrutura das narrativas orais: a primeira ação apresenta o acontecimento, a segunda estabelece uma regra, e a terceira, por sua vez, traz a quebra. O rompimento com um padrão interno que vai movimentar toda a história a ser contada.
Por certo que o folclore mundial está permeado por trincas: são três desejos que se oferece ao que esfrega a lâmpada; três batidas na madeira para isolar a má sorte; três pulinhos para que o Santo encontre um objeto perdido, ou três velas – uma para cada tipo de rebanho – para pedir intercessão ao Negrinho do Pastoreio.
Mas o três também representa o equilíbrio, fugindo do binarismo polarizador da dualidade. É um triunvirato que governa o inferno; um terceiro excluído que ao ser reintegrado traz a elevação. Por vezes, acrescentar um novo elemento aos pares já estabelecidos nos desafia, mas pode estar justamente neste outro invisibilizado o fiel da balança.
Nos mitos antigos encontramos inúmeras divindades e outros seres fantásticos em grupos de três, unidos por suas funções, características e personas. Algumas destas entidades são tão complexas que são um e três ao mesmo tempo; ou então três deuses distintos que agem unidos para criar, manter e destruir (e com isso renovar) nossa existência. É o aspecto do todo que perpassa a vida, desde o início até o término.
No entanto, ainda que as culturas antigas tenham tido diversos deuses tríplices em seus panteões, a trindade é tão essencial para o ser humano, para suas crenças e maneira de ver o mundo, que seria impossível ficar preso ao passado. As religiões que perduram até os dias de hoje se utilizam desse símbolo para trazer cada uma a sua própria verdade. E a verdade do mito, sabemos, é a grande verdade do mundo.
A força simbólica do três nos atravessa. Cruza deuses e monstros até chegar na profundeza da nossa alma. É passado, presente e futuro; é a família e os elos que nos unem; é o convite para a transcendência e integração. E é também o fim, o encerramento de um ciclo e tudo o que dele veio.
E é com isto em mente que encerramos, com orgulho, a trilogia Mitografias. Após os Mitos Modernos e os Mitos de Origem, em Mitos de Trindade você encontrará o trabalho de 12 autores que mergulharam no conceito trino para capturar, na forma de contos mitológicos, a experiência humana.
Que não se iluda aquele que não vê além da hegemonia da trindade cristã. Pai, Mãe e Filho trazem para a capa desta edição da Antologia uma visão herética da trindade estabelecida. Os motivos para esta escolha, caberá ao leitor decifrar.
Sob o risco de ser devorado no processo.
Boa leitura!
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