
Por Andriolli Costa
Admito que estava bastante ansioso para assistir a Recife Assombrado – O Filme, primeiro longa de Adriano Portela, produzido pela Viu Cine. Infelizmente, com uma estreia restrita apenas às salas locais em novembro de 2019, restava a expectativa do lançamento nacional deste projeto que se inspira diretamente na obra Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre.
Esta, inclusive, é a mesma obra que fundamenta o site homônimo “O Recife Assombrado”, que há mais de 20 anos se empenha em uma campanha de divulgação folclórica da capital pernambucana a partir do terror. Não por acaso Roberto Beltrão e André Balaio, os editores do site, assinam também o roteiro do longa juntamente com o produtor Ulisses Brandão e Bruno Antônio. Conhecendo o trabalho destes companheiros, a vontade de conferir o material produzido só ficava maior.
A oportunidade chegou nesta sexta-feira, 01 de maio. Como parte das ações de entretenimento para manter as pessoas em casa durante o período de isolamento social, o filme foi exibido em sessão única numa live do YouTube. Foi a chance não apenas de assistir à película, mas de experienciar sua reação junto ao público, que comentava empolgado cada desenrolar da cena no chat da transmissão.
Nesta ingrata posição de crítico cabe dizer que a realização do longa, por si só, já é uma conquista para os amantes da ficção folclórica. E, a partir dele podemos pensar em pontos positivos e negativos que falam não apenas sobre o longa em si, mas que também podem servir de inspiração e orientação para a produção de obras futuras. Com isso em mente, vamos a eles.
Local x Global

O longa foi aprovado em um edital da Ancine em 2015, com o título de trabalho “Cidade Assombrada”, que nem de longe era o favorito da equipe. Ainda assim, a escolha teve um motivo claro: evitar críticas de que a proposta fosse regional demais, atrapalhando a possível aprovação. Na defesa do projeto, os próprios avaliadores incentivaram a mudança: Recife era nacional! Assim, caiu o nome genérico e a proposta ganhou força.
Muitas vezes temos medo de tocar um projeto inspirado na cultura local pensando em um público mais amplo. No entanto, se é justamente esse apelo que nos encheu os olhos, qual o sentido em fazer concessões que o tornam cada vez menos único e mais parecido com tudo o que já circula por aí? Assim, trabalhar com lendas – narrativas que atravessam histórias, temporalidades e espaços específicos – é um grande acerto. A partir delas, podemos nos envolver com a cidade, suas pessoas e seu passado.
Em entrevistas sobre o filme, várias vezes se ressaltou a ideia de que a cidade era o grande personagem do longa. E é verdade: o público, no chat, se divertia identificando o lugar por onde o protagonista caminhava. Para quem é de fora muita coisa passa batido, mas é importante para dar novos cenários para a nossa imagética visual acostumada aos espaços urbanos das metrópoles do sul.
Ficção x Didatismo
É uma constante nas adaptações midiáticas o trabalho com histórias já consolidadas. Mercadologicamente, inclusive, aquelas pertencentes ao imaginário popular (contos de fadas, mitos, lendas) são ainda mais atrativas, uma vez que não exigem nem mesmo a compra dos direitos de adaptação. São patrimônios coletivos que, através do reconto, permanecem vivos.
Na audiência, encontramos dois públicos: aquele que desconhece completamente a lenda que nos servirá de inspiração e outro que cresceu ouvindo essas narrativas. Porém, mesmo dentro dos que a reconhecem, este conhecimento muitas vezes está adormecido ou nunca foi transmitido de maneira organizada. É um “ouvir falar” que deve ser estimulado pela história para se transformar em envolvimento.
Se abordar a origem é inevitável, encontramos no uso das lendas um grande desafio do qual Recife Assombrado também peca: como tratar o assunto sem excesso de didatismo? Em diversos momentos o filme sofre com infodumping, e muitos deles ao explicar a história de uma assombração. São monólogos enormes, entregues por vezes de maneira pouco natural, assumindo um tom professoral no que seria uma conversa. A câmera, que pouco se movimenta nestas cenas, colabora para tornar esses momentos ainda mais arrastados.
Qual seria uma solução? Ao invés de interromper o filme inteiro para contar a origem da criatura, tentar trazer essas informações de maneira mais integrada a história e em pílulas. Como não há essa integração, parece que as lendas ficam descoladas do filme em que deveriam ser estrelas. Se a Galega de Santo Amaro matou o marido com seu colar, porque não espelhar isso na tentativa de assassinato que ela comete na narrativa do filme, por exemplo? Ajudaria a criar unidade.
Outro momento arrastado e didático foi o vídeo em que o personagem Vinícius entrevista os já mencionados editores Roberto Beltrão e André Balaio. Ainda que seja justa a homenagem, o diálogo sobre os perigos de se estudar assombrações é mais do que redundante e poderia ter sido abreviado. A câmera parada em plano aberto mimetiza uma gravação para YouTube, mas para a estética do filme foi uma cena empobrecedora.
Em compensação, outros momentos da história ficam apressados ou subjetivos demais. Isso contrasta com plot inicial, simples e que poderia ser bastante efetivo: Hermano, recifense que foi expulso de casa pelo pai e cresceu afastado em SP precisa voltar para investigar o desaparecimento do irmão, que esteve envolvido investigando as assombrações da cidade.
Da metade para a frente, todavia, a trama degringola ao ponto que o espectador precisa mais de uma vez que os personagens resumam o que está acontecendo para que a história volte a fazer algum sentido. A falta de explicação da cena final e dos motivos que levaram à transformação do Boca de Ouro deixam uma interrogação na cabeça do público que apenas um novo corte do filme poderia sanar.
Vale lembrar que as primeiras notícias sobre o filme davam conta de que ele seria um docudrama, buscando dar a ver na forma de audiovisual o livro que lhe serviu de base. Com o desenrolar do projeto, ele se assumiu como ficção, mas demonstrou dificuldade em abrir mão desses elementos da produção inicial. A própria menção ao escritor pernambucano ficou tão recorrente que se tornou quase caricata. Em uma cena, a femme fatale Rúbia revela que ganhou de seu affair um livro de Gilberto Freyre autografado. Está aí uma bela forma de conquistar uma mulher.
Coesão na linguagem

Sabemos de toda a dificuldade que é fazer cinema no Brasil, por isso é possível passar por cima de uma série de problemas de ordem técnica. Um dos mais evidentes é a fotografia. Nas cenas mais escuras, tudo some de vista e fica difícil entender o que está acontecendo. Uma luz de contorno poderia ajudar muito, mas realmente dos problemas esse é o menor.
Uma das grandes desconexões presentes na linguagem audiovisual do filme foi a escolha de representar os assassinatos cometidos por meio de animações. A proposta tem seus méritos, mas a estética cartunesca dos desenhos em nada conversa com o restante do filme.
Em algumas cenas, podemos ver que o desaparecido Vinicius chegou a ilustrar algumas criaturas nas suas observações, com um traço muito mais sujo e sombrio. Se houvesse maior ligação entre estes, que são os grandes elementos gráficos do filme, poderíamos perceber um ganho enorme no quesito estético.
Por outro lado, a escolha de trabalhar com assombrações mais humanas foi muito bem acertada tendo em vista os recursos disponíveis. No caderno, encontramos referências visuais ao Lobisomem e à Fulozinha. No diálogo de um dos personagens, se fala da Cabra-Cabriola. Então, de certa maneira, estes seres puderam fazer parte do filme dentro das possibilidades. Imperdoável mesmo é o Boca de Ouro, com este nome, não ter mostrado seu sorriso dourado uma única vez – nem mesmo na animação.
Antagonistas

O antagonista do filme, Jair das Almas, foi um grande equívoco. Com tantas assombrações à disposição, a escolha por criar um vilão próprio foi arriscada e cobra seu preço. Jair tem tantas características costuradas que nenhuma lhe é realmente marcante.
Ele é parte diabo da encruzilhada – ponto para assinar contratos pela sua alma, parte cultista satânico, parte serial killer e parte necromante. Essa última, entretanto, quase não tem tempo de tela, e precisei de um tempo para entender que o motivo do retorno de um personagem como morto-vivo se devia aos poderes do vilão. Como se não bastasse, ainda carrega um patuá no pescoço que o torna imortal – algo que só aparece no último ato.
Sua presença é indicada por três elementos cênicos que ficam concorrendo uns contra os outros: um assobio agudo, um chacoalhar de anéis ou pulseiras (à la Sinhozinho Malta) e a mania de passar a faca insistentemente por grades e paredes. É tudo tão gritante que perde impacto. Fosse apenas uma dessas, o personagem já estaria mais do que bem caracterizado.
Curioso perceber que os maneirismos com a faca, inclusive, deixam o personagem mais bobo do que assustador. Na sua introdução, quando percorre uma casa com a faca sempre levantada à altura da cabeça – filmado com uma grande angular estática – temos uma cena digna de “terrir”. Na sequência, demorei a entender se a vítima havia sido realmente esfaqueada ou apenas arrastada por ele para um ponto de luz.
Outro ponto negativo da escolha de um vilão criado diante do bestiário já disponível é que o público, a todo momento, se vê tentando adivinhar que lenda está sendo representada. Acompanhei isso pelo chat da transmissão: “É um assobio? Será que tem a ver com a Comadre Fulozinha?”. “E essa roupa estranha. Será a lenda do Frade e a Defunta?”. O pay-off da descoberta é negativo. Um Papa-Figo freyreano, pactário com o diabo, cairia perfeitamente bem na trama.
Avaliação
Recife Assombrado é um filme com seus méritos, especialmente tendo em vista os recursos de que dispunha. Ele peca em quesitos técnicos que poderiam ter sido evitados: incoerência estética nas animações, didatismo seguido de displicência no roteiro, marasmo na direção das cenas de explicação, caracterização carregada do antagonista. Acerta ao investir na cultura e na produção local, percorrer a cidade e contar sua história, escolher trabalhar com assombrações mais humanas e pincelar as demais como easter eggs. Ele nos mostra que é possível trabalhar o que é nosso em cinema de gênero, ainda que não seja fácil. É uma experiência inicial que, espero, traga frutos mais maduros com o passar do tempo.
Nota: 2.9/5