Escritor anônimo, que assinava apenas como C. continua sua série de registros folclóricos. Se o primeiro texto, “Tradições populares de Minas e S. Paulo” se centrava apenas no Saci, desta vez vai focar em Curupira e Boitatá, expandindo o título para Tradições populares de Minas, S. Paulo e Rio de Janeiro. Interessante notar também como a primeira parte do texto é toda dedicada a uma postura passivo-agressiva de defesa do tema em um jornal, mesmo em pleno “século das luzes”. O texto foi publicado no Correio Paulistano em 20 de outubro de 1859 e pode ser lido aqui.

Tradições populares de Minas, S. Paulo e Rio
Ao leitor,
Tinha eu escrito apenas o título que aqui vai em frente do artigo, quando entrou-me pela porta adentro um quidam (N. E.: “sujeito) com ares de zuavo, de charuto e luneta ao lado, e que sem mais prólogos começou:
– Que diabo fazes tu aí?
Mostrei-lhe o título, e disse-lhe:
– Vede.
Aplicou imediatamente a luneta e disse:
– Pois deveras causas-te com estas asneiras de bruxas.
– São gostos.
– Qual gosto nem meio gosto, isso é cinismo crônico. Ora, é boa? Escrever bruxarias no século das luzes!
– E que diabo queres tu que se faça de uma noite de quarta-feira? Não sou fumante, sou mau de copo, não tenho o que fazer… a menos que não quisésseis que estivesse contanto as tábuas do teto, ou as pedras das calçadas, não sei o que me aconselharias.
– E isto é para o Correio Paulistano?
– E por que não? As folhas públicas, meu caro, tem dever de satisfazer a toda ordem e qualidade de leitores.
O negociante, o empresário, o espectador, e os mais que vão por essa escala a fora, leem os anúncios. Para eles, nada de mais interessante, eloquente e bem escrito do que um “Fosfato de ferro” ou “loja do barato”, ou “brilhante resultado”, etc. É um prazer enorme o de ler os anúncios dos jornais, sobretudo quando são eles escritos em letras bem graúdas, e seguidas de uma longa porção de arrazoados. Por isso os periódicos devem ter uma parte destinada aos anúncios.
Os políticos e ambiciosos gostam de ler notícias de ministérios, guerras do oriente, artigos de fundo e correspondências. Os periódicos devem consagrar a esses seus leitores algumas colunas.
Longe destes dois extremos existe uma outra ordem de leitores; são os que leem para distrair-se e esquecerem-se, durante algumas horas, dos fastidiosos trabalhos da vida. Os periódicos consagram a estes os romances, os artigos de variedade, as poesias.
E a dissertação continuou por aí fora, e foi longe.
Naturalmente o leitor já pressentiu que toda esta retórica é para desculpar-me de continuar as minhas histórias populares. Entremos, portanto, no assunto.
Caipora
Entre as tradições que nos ficaram dos índios Guaianazes, que eram os que habitavam o lugar em que está hoje situada esta cidade, quando aqui penetraram pela primeira vez os portugueses em 1540, existe a do Caipora, ou Caapora, como dizem o povo de Santos.
Esta tradição é uma das mais espalhadas pelas duas províncias de Minas e S. Paulo e, bem que horrível, é grandiosa como a imaginação dos índios.
Abordai o primeiro caipira velho que encontrardes e perguntai-lhe o que é o caipora e ele imediatamente vos dirá: “é um demônio de forma gigantesca, cuja cabeça se vê por cima das árvores de nossas florestas”.
A forma deste ser é a seguinte: Do meio do corpo para cima tem ele a aparência de homem, com a diferença de ter o corpo coberto de um pelo longo e escuro. Do meio do corpo para baixo tem a figura do porco selvagem.
De noite seu corpo alumia com fosforescências, mas de dia é negro.
Segundo as tradições, o Caipora só habita as florestas ínvias e desertas, e prefere aqueles sítios que as serranias e taquaras tornam inacessíveis. É ele um demônio caçador, e os que o tem visto pintam-no sempre com um longo bastão. É naturalmente algum tronco de peroba, ou algum pinheiro que serve de bengala ao Polifemo de nossas florestas.
Persegue constantemente as caças de porcos, capivaras, antas, etc. Quando persegue aos animais ferozes, dá de quando em quando um grito sombrio que se ouve em distância de léguas, e que atroa toda solidão. Devora com voracidade espantosa as caças que apanha, e com tal sofreguidão que engole os ossos e as entranhas; nem mais nem menos do que como os gatos engolem os ratos, e as sucuris os bois. Suas mãos, unhas e barbas acham-se constantemente ensanguentadas.
Dizem que nunca se feita, e que vive constantemente andando de um sertão para outro.
Quando alguém encontra com ele deve imediatamente fugir e procurar abrigar-se dentro de alguma casa, porque ele não penetra nos lugares em que mora o homem; o povo dá uma razão disso que já não me lembro.
Numa das minhas viagens para o centre, encontrei num pouso um velho que me fez uma narração sobre o assunto.
“Descíamos pelo Tietê abaixo, seguindo os rumos de Cuiabá”, disse ele. “Já estávamos bem no meio dos sertões. Uma noite, pousamos junto de umas matarias plainas que iam embora até chegar no céu; tínhamos acendido umas fogueiras por causa das onças que eram muitas naqueles lugares e que, a não ser essa cautela, matavam-nos decerto. Tínhamos uma porção de cães, armas de fogo, e cada um de nós era obrigado a fazer sentinela por uma noite enquanto os outros dormiam. Para que a sentinela não dormisse, amarrava-se a uma estaca com um braço levantado para o ar. Sucedeu que nesse dia coube a um primo meu fazer a guarda, coitado! Era amigo do sono e dormiu apesar da posição incômoda em que se achava. Pela volta da madrugada vimos no nosso rancho um clarão como de luz de enxofre, e um cheiro como esse que se exala da terra quando, depois de uma seca, cai uma grande tempestade. Ficamos todos quietos e nem os cães se moveram e nem ladraram: era o Caipora. Quando amanheceu… oh, meu senhor, que pena. Só se vendo…
– Então, que foi?
– Faça vossa senhoria a ideia que eu fui o primeiro que me levantei, e vi meu primo amarelo como cera; chego… vou ver e estava morto. E o que é mais ainda: o Caipora havia metido a unha bem no alto da cabeça, destampou o crânio, comeu os miolos e deixou todo o corpo são. Veja vossa senhora que dor não havia de ser a do pobre quando o malvado lhe estava chupando a cabeça?!
Apesar se sua forma colossal, o Caipora é por vezes atacado pelos animais e feras de nossas espessuras. Para fazê-lo, reúnem-se em bandos e os tigres negros são os mais enraivados nessa luta. Reza ainda a tradição que nessas ocasiões os uivos e roncos dos tigres reunidos ao grito do Polifemo americano estrugem pela floresta e rebombam por muitas léguas ao longe. No lugar da luta fica o terreno todo amassado e, à exceção dos troncos mais robustos, todos os outros são desenraizados.
Diziam os indígenas que se alguma mulher pejada (N. E.: grávida) se encontrava com este ser, o seu filho seria por toda a vida infeliz. Se ia à caça, nada encontrava para matar; se procurava fazer algum bem, resultava-lhe mal, etc. É daí, creio eu, que vem hoje a dizer-se “caipora” o homem infeliz, e que vê constantemente burlados os seus planos.
No resumido dicionário indiano (N.E: indígena), que possuo, não pude encontrar o que queria dizer esta palavra, a qual é manifestamente composta das duas seguintes: cahy e porú. Sei apenas que a segunda, porá, que dizer anta.
Esqueci-me de dizer que os índios acrescentavam que, quando alguma mulher era encontrada por este ser, ele não a matava chupando-lhes os miolos, mas sim gozando-a até que morresse por inanição. Quem sabe se esta última crença não era fundada na necessidade que eles tinham de fazer com que suas mulheres não andassem de noite indiscretamente sozinhas? Pode muito bem acontecer que eles, assim como nós, tivessem horror a tal realeza de portas adentro.
Muitas outras contam ainda do Caipora, minhas recordações são, porém, vagas: é que, quando eu as ouvia, nunca me passou pela cabeça que havia algum dia de escrevê-las.
Boitatá
Passamos agora a uma outra tradição, que é a do boitatá, ou botatá, como dizem outros, estando tanto num como no outro caso corrupta a pronuncia do tupi, por que o nome certo é Mboitatá. Querem dizer as duas componentes o seguinte: Mboi – cobra, itatá – fogo.
Frei Gaspar de Madre de Deus diz-nos que no tempo das pescas, ou das piracemas (peixe-sobe), desciam os índios para a beirada do mar, onde construíam habitações passageiras. Pelos mangues e paués de Santos divagavam eles em todos os sentidos pescando as ostras, mexilhões e os diversos cetáceos de que eles abundam. Exaltados de imaginação, como todo o povo primitivo o é, era natural que as fosforescências do mar ou pântanos lhes impressionassem a imaginação. Diziam pois que eram cobras de fogo que perseguiam aos pescadores. O piraquara (“pescador”. De “pira”, peixe, e “quara”, apanhar) que ao escurecer se encontrasse com algum boitatá estava perdido; porque se ele encontrasse a sua canoa, imediatamente a faria arder. Era tal o terror que tinham dessa cobra que bastava vê-la para, muitas vezes, morrerem.
Davam eles o mesmo nome e dão-no ainda hoje os Caipiras a esses fogos que se veem por vezes luzir em terra firme.
Nunca vos aconteceu, muito graciosa leitora, passar alguma noite pelos cemitérios, e ver uma luzinha azulada pairando sobre alguma sepultura? Seu clarão é azulado e pálido, e sua luz é tremente como a de um círio levemente agitado pelo vento: logo que alguém se aproxima, ela treme violentamente, cresce um pouco, derrama um clarão mais vivo, aproxima-se lentamente a princípio, depois mais veloz/ vai-se ficando frio e o suor cai em bagas, e depois corre-se, e ela segue e traz e vai indo e correndo sempre até que, afinal…
– Ai!
– Então, que diabo é isso?
– Pois a vossa estúpida história não me ia deveras fazendo medo!
– Não se admire, minha senhora, muitos bons bigodes têm-se distorcido nestas conjecturas. Ou mais de um, tenho eu visto em casos semelhantes, dizer de si para si: nada, deixemo-nos de histórias que o negócio já vai cheirando a fósforo.
Esta tradição é muito espalhada pelas duas províncias de que temos falado, e pela do Rio de Janeiro.
Há muitas histórias sobre o Boitatá, de que não me lembro. Pois hoje paro aqui, respeitável senhora. No seguinte artigo sai forçosamente o lobisomem, é essa uma tradição de minha particular estima. Por quê? A isso vos responderei quando estiver com menos sono do que hoje.