[PODCAST] – Arquivo Folclore 2: Palhaço de Folia

Se preferir, faça download do programa aqui.

Por Andriolli Costa

Arquivo Folclore é o podcast narrativo do Colecionador de Sacis. Neste documentário sobre a cultura popular brasileira vamos mergulhar no universo das Folias de Reis a partir de sua figura mais contraditória: o palhaço. Quem é este festeiro mascarado: um soldado, um espião, um diabo? Ao longo do episódio, veremos que acima de tudo, o palhaço é humano. E, às vezes, humano até demais. Independente de religião, venha entender essa manifestação que carrega um pedacinho da história e da alma do nosso povo.

Apresentação, roteiro e edição: Andriolli Costa
Arte da capa: Bruno Brunelli

Agradecimentos:
Glaucia Santos Garcia e Rogério Williams (em especial pelos cuidados pós-evento)
José Vicente Rangel, da folia Estrela de Belém (Cambuci)
David Souza Silva (Gordinho de Itaperuna)
Mestre Cláudio Xaxo, da folia A Brilhante Estrela de Belém (Morro da Formiga)
Mestre Messias da folia Boa Lembrança (Quilombo do Carmo)
Mestre Anélio e Gilson José da Folia Estrela do Oriente (Bom Jardim)

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Trilha Sonora:
Este programa utilizou áudios das folias gravadas localmente no Encontro de Folias de Monnerat. Além disso, trechos de Baiano e os Novos Caetanos e Folia para São Sebastião do projeto Viola do Norte.

Pix Folclórico: colecionadordesacis@gmail.com

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Segue abaixo o roteiro do episódio:

Era uma manhã de sábado no Rio de Janeiro. Não era dia de santo reis, mas era dia de folia. E eu vou para Monnerat.

[carro chegando. Glaucia Garcia e Rogério Willians me recebem]

O distrito que um dia já foi chamado de Nossa Senhora do Monnerat fica há umas três, quatro horas de distância da capital, na região serrana do estado. E é ali, e na cidade vizinha, Duas Barras, que acontece há mais de 30 anos o Encontro de Folias de Reis. Nesse fim de semana que estamos indo, espera-se que quase 50 folias de toda a região se apresentem. Mostrando um pouco da sua cultura e da sua fé.

[conversamos amenidades sobre o dia]

Eu sempre fui fascinado por Folia. Ou melhor. Para ser sincero, eu sempre fui fascinado pelo Palhaço da folia, essa figura mascarada, com o rosto coberto de pelos, couro e chifres, que mexe com as emoções, tanto com que está de fora quanto com quem vive a festa por dentro.

[Voz 1 diz ter medo da fantasia de palhaço]

[Voz 2 diz que folia não precisa de palhaço]

O próprio papel do personagem na festa é ambíguo. É o perseguidor arrependido, mas que à raiz da desconfiança sempre persiste.

[Voz 3 diz que o palhaço é o Herodes]

[Voz 4 diz que o palhaço é o soldado]

[Voz 5 diz que palhaço é coisa que não é de Deus]

E, ao que parece, às vezes essa desconfiança até que tem fundamento.

[Voz 5 diz que conhece palhaço que fez pacto com o bicho, mas aí vai da consciência de cada uma]

Eu sou Andriolli Costa e este é o Arquivo Folclore.

[Sobe som. É a música Folia de Rei, de Baiano e os Novos Caetanos. Toca até o primeiro refrão e vai para bg como se fosse som de rádio]

Você sabe de quem é essa voz? É de ninguém mais, ninguém menos do que Chico Anísio no seu projeto musical Baiano e os Novos Caetanos. O trio nasce como uma paródia, mas a música Folia de Rei – composta por Arnaud Rodrigues e pelo próprio Chico, não tem nada de humorística e acabou virando um clássico dessa manifestação que tem muito de Brasil.

Independentemente se você for ou não praticante da religião católica, eu gostaria de lhe convidar a olhar para a folia de reis como uma síntese da alma do povo – com toda a sua sensibilidade e contradições. Por um lado, é impossível desvincular essa manifestação da devoção e da fé. Por outro, é mais que religião: é tradição, é comunidade, é muito além do que qualquer instituição pode dizer ou desdizer. E nesse caminho, que nos liga até o sagrado, encontramos o palhaço: aquele que nos lembra que, no fundo, somos apenas humanos. E, como veremos ao longo do programa, humanos até demais.  

[Sobe som de folia de reis de três lagoas tocando em uma casa.]

A primeira vez que eu vi uma folia na vida foi em Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Era 2010, eu estava fazendo o meu trabalho de conclusão de curso e fui acompanhar o festival de folias que acontecia na região. Eu estou olhando agora para o texto que escrevi 13 anos atrás e achei curiosa a palavra que usei para me referir aos palhaços: “Cireneus”. Ao lado, a foto de dois brincantes mascarados: roupas de chita vermelha e azul e chapéu pontudo com uma flor na ponta. E, é claro, máscara de couro enfeitada com glitter e lã de carneiro para desenhar a barba e a sobrancelha. Fui pesquisar e Cireneu é como os jornais da região nomeiam os palhaços de folia no local, mas eu mesmo não me lembro de ter escutado a palavra por lá.

Curioso é perceber que são várias as formas de se referir a esse brincante misterioso e cada uma dá pistas da sua complexidade. Cireneu remete à Simão de Cirene, o carregador da cruz. Um homem que foi obrigado pelos soldados romanos a carregar a cruz de Cristo até o Gólgota; o local onde Jesus foi crucificado. O Cireneu mascarado é, assim, um penitente. E isso faz todo sentido com a matéria que escrevi.

Na época, conheci um jovem palhaço chamado José Carlos de Souza, que tinha toda a feição de menor de idade. E ele me contou: seu irmão havia feito uma promessa de que seria palhaço de folia por 7 anos consecutivos. Com três anos de farda, foi assassinado. Ele então estava assumindo a máscara e assim o faria pelos próximos quatro. Promessa é dívida.  É claro que muitos festeiros de reis tem suas promessas, mas pensem no que é assumir essa cruz em específico: a do palhaço. Além do medo que ele inspira, a figura do palhaço tinha um quê de expiação.

Um nome bem comum para os palhaços é Bastião. É um nome padrão que encontramos em várias festas populares ligadas à figura do negro: especialmente no Cavalo Marinho. Muito mais interessante é outro nome: o Marungo. Sua origem é da palavra Malungo, usada pelos negros escravizados no Brasil colônia no sentido de companheiro, irmão de criação, pessoa na mesma condição. Meu malungo. Meu marungo. A etimologia viria da língua do Congo: partilhando radicais com palavras que significariam vizinho e navio. Intelectuais como o pernambucano Pereira da Costa iriam então supor que seria uma referência àqueles que passaram pela mesma experiência dos navios negreiros.

Esse elemento nos ajuda a tratar de um outro elemento muito presente nas folias de reis: a influência do negro nas folias. Eu poderia falar do óbvio: o número de festeiros, a influência no ritmo, na dança, mas vamos mais a fundo: a relação é tão forte que mesmo com as folias sendo intrinsecamente uma festa cristã, é muito comum que elas abracem também as religiões de matriz africana. É o que me explicou o Rogério Willians aqui.

[Rogério conta que as folias cantam olhando para os temas que veem nos presépios. Numa casa de umbanda ou terreiro de candomblé, vão cantar para os orixás que reconhecerem por lá]

[Sobe som palhaço Giliard falando de Exu]

Você está ouvindo o improviso do palhaço Giliard, da folia dos Borges, em Leopoldina, Minas Gerais. O palhaço está em frente a um terreiro de Candomblé. Ele usa uma farda verde, azul e vermelha, com uma máscara de tigre e longos cabelos loiros. A boca do tigre está aberta, e por ela divisamos parte do rosto do brincante. Há um adorno sobre sua cabeça que pisca em luzes coloridas, da mesma forma que seu tênis. As luzes, led e calçados são elementos muito frequentes nas folias mais novas.

Palhaços, Bastiões, Cireneus, Marungos. São vários nomes, vários rostos, várias máscaras. Mas quem é esse personagem e, afinal, o que ele faz na folia?

Eu convidei o José Vicente, o palhaço Ventania da folia Estrela de Belém, para contar um pouco dessa história para a gente.

[José Vicente se apresenta como fazedor de cultura que aprendeu com seu avô]

O José é um homem negro, com o rosto já com algumas marcas de idade e sorriso fácil. Ele me atende de camisa social, no intervalo de almoço de seu cargo no departamento de cultura em Cambuci.

[Ele conta que nunca quis sair da palhaço, mas como não tinha quem saísse na folia deles quando era criança, assumiu o papel. Mas nunca quis usar chifres, porque botaram na cabeça que aquela era a coroa do diabo]

Isso aconteceu quando José tinha 12 anos de idade. Quarente anos depois, ele ainda cumpre a função. Mas uma conceção ele não faz. Quando está de Ventania, usa uma farda franjada de preto e tons de rosa e branco. Sua máscara é a de EVA, com a cara de monstro com boca aberta, língua e dentes de fora. barba vistosa e bochechas marcadas por uma espiral. Porém, não usa chifres.

[José conta que o palhaço de folia é representação dos soldados de herodes, que seguiram os três reis magos com o objetivo de entregar a posição de jesus menino para o rei. Mas ninguém fala como essa história termina]

E como termina?

[Eles se arrependeram e louvaram cristo. E na fuga para o egito, brincaram e dançaram para distrair os perseguidores. Esse é o papel dos palhaços. São os Marungos de Deus]

Os Marungos de Deus.

Existem outras versões para essa história. Mas acho que já está na hora da gente voltar para Monnerat e acompanhar a chegada das folias. A Gláucia e o Rogério são muito amigos do pessoal de uma Folia de São Fidelis, que ia chegar às 9h. Nós saímos seis e meia da manhã do rio de janeiro, e mandamos mensagem: por favor, não vão embora sem falar com a gente antes. No caminho, a Gláucia me explicou: as folias vão se apresentando por ordem de chegada, então era capaz da gente perder algumas boas folias se nos atrasássemos demais.

[No carro, estamos atrasados. Gláucia brinca que as folias devem ter ido embora, de tanto que demoramos]

Momentos depois chegamos na cidade e ela realmente estava estranhamento vazia. As folias já tinham ido embora? Na praça central de Monnerat, ao lado da igreja, os funcionários ainda estavam soldando a estrutura que protegeria o presépio do tempo. Decidimos pedir informação. Na programação oficial , a festa começa às 6 da tarde daquele dia. A folia de São Fidelis não planejava chegar 9 da manhã, mas 9 da noite!

[Estamos na praça, tentando decidir o que fazer]

E agora?

[Gláucia começa a rir sozinha, puta da vida]

Nisso, chega a mensagem de whatsapp no grupo que eles tem com a folia.

[A voz fala que hoje o evento é só a noite mesmo. Amanhã que é cedo]

No final, resolvemos tentar ficar pela cidade. O objetivo era pelo menos uma folia conseguir ver antes de ir embora. Enquanto isso, fui conversar com quem estava por ali. Depois do almoço, encontrei dois operadores de áudio montando um segundo palco um pouco distante do primeiro. Na estrutura do evento, enquanto as folias oferecem a bandeira para o presépio, o palhaço brinca fazendo um improviso neste segundo palco. Cada folia tem ajuda de custo de 500 reais para participar do festival, mas nesse momento de rimas e apresentações o palhaço pode conseguir mais recurso. Separar é uma estretégia para que todos tenham tempo.

Foi o Antônio José que explicou isso para a gente. Mas o interessante veio depois, quando eu perguntei se além da parte profissional ele tinha alguma ligação com folia.

[Antônio conta que seu avô foi mestre de folia, por isso ele conhece bem como funciona. Tem folia muito rígida, mas ele entende. É questão de respeito. Ainda assim, mesmo com o avô querendo muito, não quis seguir na bandeira]

O Igor, que é assistente do Antônio, foi mais tímido. Mas deixou essa deixa maravilhosa:

[Igor diz que acha tudo legal, mas que tem gente que tem medo de palhaço. Inclusive a patroa. Sua esposa? Não, sua chefe]

A Patroa, no sentido literal, é Ludmilla Caetano. Ela quem presta serviço para a prefeitura da região.

[Ludmilla descreve os palhaços com seus dentes horrorosos, cabeções, uma figura bem horrenda]

A Ludmilla disse que não sabia nos contar qual era a origem dos palhaços na folia. Ela só sabia pra ela. Então podemos voltar a ouvir outras versões.

Nós já ouvimos o José Rangel, o Ventania, falar sobre como os palhaços eram os soldados de Herodes I, o grande. Em alguns autores, vocês vão encontrar referências também a palavra “espías”. Os “espías” de Herodes. Pelo que pude encontrar, é apenas a palavra em espanhol para espião. Quando os soldados acompanharam os reis magos na sua viagem até Jesus, deveriam ter retornado e entregue a posição para o rei. No entanto, a tradição diz que eles se arrependeram e se converteram ali mesmo e passaram a despistar os perseguidores. Por isso é que, em algumas regiões, o folclore manda os brincantes de folia nunca voltarem pelo mesmo caminho que fizeram ao visitar os presépios casa a casa.

No entanto, existem várias outras versões. Praticamente uma para cada Folia. Eu convidei o mestre Cláudio Xaxo, da folia A Brilhante Estrela de Belém, do Morro da Formiga, aqui na capital do Rio, para falar um pouco da sua interpretação para a gente.

[Cláudio se apresenta]

Cláudio é jovem, um homem negro de pele clara. Tem um cavanhaque bem desenhado e os cabeços curtos, quase raspados. Ele fala comigo da sala de casa, de camiseta regata verde e branca com a estampa da sua folia.

[Claudio conta a história dos soldados que acompanharam os magos, mas não para por aí]

Na versão que ele relata, os palhaços também são soldados de Herodes. Mas sua transformação só se dá no fim da vida de cristo.

[Para ele, os palhaços se transformam quando o sangue virado em água de jesus crucificado cai nos seus olhos]

É muito interessante perceber que nesse registro encontramos uma união com outra história: a de São Longuinho. Na hagiografia, a biografia dos santos, Longuinho foi o soldado que cravou a lança em Jesus crucificado. A água que escorreu do corpo de cristo lhe caiu sob os olhos, o que fez o homem ter uma revelação.

[A multidão não permitiria aos crucificadores saírem ilesos, então eles se mascararam e vestiram em trapos. Esta é a origem dos palhaços. Por isso, para eles, quanto mais feio, mais bonito]

Para os palhaços, quanto mais feio, mais bonito. Essa é a linha que Cláudio conta que segue em sua folia. Todo ano ele escolhe um tema para o grupo: este ano, foi família. Os palhaços, no entanto, são livres para escolher a feiúra que lhes cabe. Eu estou olhando aqui para uma foto que ele postou há poucos dias no Facebook. Das cinquenta pessoas fardadas, os palhaços roubam a cena: um deles está com a máscara do Vingador, do desenho Caverna do Dragão. O outro parece usar uma de Lobisomem. E ainda outro, que parece uma criança, ostenta uma máscara de Papai noel e um cajado todo enfeitado com festão de Natal. Os olhos vazados, que ficam escuros na imagem, dão um tom mais estranho do que o normal para a figura natalina.

[Ele conta que foi uma provocação. O menino quis muito fazer papai noel e ele foi pesquisar sobre São Nicolau e viu que tinha a ver]

No folclore, vocês bem sabem, não é possível dizer que uma história é mais ou menos verdadeira que a outra se existe relação de identidade e pertencimento. É a comunidade que dá legitimidade a uma narrativa. Ela existe a partir do momento em que é contata. Ponto. O que nós vamos ver aqui agora é outra questão: é a consolidação, do ponto de vista histórico, dessa manifestação cultural que são as folias de reis.

As folias, no Brasil, são introduzidas pelos jesuítas portugueses durante os esforços de catequese. E foram duas as influências principais de Manoel de Nóbrega e José de Anchieta: o teatro português de Gil Vicente e os presépios vivos de São Francisco de Assis.

São Francisco criou os presépios há 800 anos, em 1223, quando volta de Belém para a Itália. Ali ele reencena, com pessoas e animais de verdade, o nascimento de Jesus na manjedoura. Um momento que influenciou e muito a cultura popular do ocidente. As encenações dos ciclos natalinos também inspiram folguedos como as pastorinhas, as lapinhas, os bois de reis e, é claro, as folias. Não é sem motivo que alguns lugares chamam ainda hoje as folias de Caravanas de São Francisco de Assis.

A outra inspiração, como mencionei anteriormente foi Gil Vicente. Em 1503, o dramaturgo recebeu a encomenda de produzir uma nova peça diretamente da Rainha, Dona Leonor. Em poucos dias ele escreve e entrega o Auto de Reis, uma história sobre dois pastores que estavam indo à Belém para encontrar Jesus, mas se perdem, e acabam guiados por um cavaleiro e um ermitão que acompanharam os reis magos. O auto termina em um canto coletivo que une todos os personagens.

[Matéria de jornal mostrando um Auto de Reis em Penafiel, com direito a camelos e tudo]

Sim, camelos. Isso é em Penafiel, Portugal. Algumas cidades ainda hoje representam o auto, também inspirados pelo presépio vivo.

Manoel de Nóbrega encomenda com Anchieta esta que seria a sua primeira peça em 1561. O Auto de Natal, ou como fica mais conhecido “Auto da pregação universal” recebe este nome por ter sido escrito em português, espanhol e em tupi. A peça, com três horas de duração, é uma alegoria para o pecado e busca pela graça de Deus, e vai terminar com todos os personagens reunidos cantando e dançando juntos.

O texto faz alusão a três grandes momentos do ciclo de fim de ano: a festa de Natal, em 25 de dezembro, a festa da Circuncisão de Jesus, em 01 de janeiro, e o Festa dos Reis Magos, em 06 de janeiro.

Os três reis do oriente – e daí, da trindade, vem a expressão “terno de reis”, são Gaspar, Belchior (ou Melchior) e Baltazar. Até o século VIII a liturgia os entendia como reis persas. Mais tarde, vai se falar inclusive de etnias distintas para cada um deles, representando a integração do ocidente com o oriente. Melchior, da Pérsia, ofereceu ouro – um símbolo da nobreza do rei menino. Gaspar, da Índia, ofereceu incenso – símbolo do contato com o divino, a imaterialidade. Por fim, Baltazar, das arábias, que passa a ser representado como um santo negro, oferece Mirra. Trata-se de uma resina utilizada para o embalsamento de cadáveres, e é tida como um prenúncio do martírio e morte de Jesus.

Em Portugal, festeja-se desde o século XVI as Reisadas ou Cantar dos Reis. Nele, os reiseiros percorrem de porta a porta as casas da comunidade, tocando e cantando em troca de doações, comida e bebida. Eu fui ver alguns vídeos sobre cantar dos reis: em certos grupos, há cantadores vestidos como os três reis magos (incluindo um inegável black face ao retratar Baltazar). No Brasil, isso nunca acontece. A companhia é de reis, mas ninguém os personifica. A cantoria brasileira é mais rítmica, com mais instrumentos. E em Portugal, nenhuma companhia tem palhaços. Mas tem alguma folia, no Brasil, que não tem palhaços?

[Glaucia fala como os mais velhos se incomodam com palhaços]

Pouco depois de falarmos com os operadores de áudio do coreto da praça, seu Luiz Carlos Henrique veio puxar assunto com a gente. Aos 84 anos ele transita por algumas histórias, mas conta que por muitos anos foi cantador em folia.

[Seu Luiz diz que visitava muitas casinhas]

Perguntei do que ele mais gostava.

[Do canto e da bateria. Palhaço não. O que ele diz, eu repito abaixo:]

Cinco pessoas com a roupa azul, capacete cor do céu, mas palhaço? Hm, hm.

Podemos entender melhor essa aversão ao palhaço na fala do sanfoneiro Gilson José, que há 23 anos acompanha a folia Estrela do Oriente de Bom Jardim.

[Ele diz que a folia já teve palhaço, mas por ele fazer coisas estranhas, pararam de ter. Quando coloca a máscara, parece que ele incorpora alguma coisa ruim e faz coisas que desagradam as pessoas]

Desagrada? Como assim? Bom, tem algumas coisas. Além de dançar e brincar, os palhaços são notórios versadores. E eles versam pedindo dinheiro para si e para as folias.

[Rogério e Gláucia contam como os palhaços rimam a partir do dinheiro que recebem de oferta]

E dizem que alguns palhaços… exageram na brincadeira e fazem rima com o que não pode, deixando as pessoas bastante ofendidas.

[Sanfoneiro Gilson fala que um dono de casa ficou muito feliz com a folia, veio o palhaço e estragou tudo]

Também existe outra fama ruim dos palhaços: a bebedeira. Para poder brincar, correr e dançar por tantas horas seguidas, muita gente diz que os palhaços acabam recorrendo à cachaça. Isso vai de folia para folia. Algumas, como a do José Vicente, de Cambuci, são bastante rígidas quanto a isso. Ele também zela pela postura do palhaço:

[José Vicente diz que é preciso ter noção de com quem brincar e onde brincar]

[Emenda com outro assunto. Gláucia fala do encontro das folias e de como elas brigavam feio no passado]

Esse trecho aqui é do Alceu Maynard Araújo, do livro Folclore Nacional volume I, de 1965. No texto, não é só a bandeira que ficava com o grupo oponente. Olha só:

“Quando nas folias há palhaços, evitam o encontro de dois grupos porque após a porfia nos cantos, o terno perdedor é obrigado a dar ao vencedor o fardamento, relho, máscaras e até instrumentos. Os palhaços dão rasteiras, rabo de arraia, cambapé, até tirar o capacete do adversário. Os palhaços devem assim proceder porque são espias de herodes, são satanases e, como tal, devem semear a cizânia”.

[Rogério fala que isso não acontece mais. Sobe som de briga de palhaços em Mococa, durante encontro entre folias]

Isso foi em Mococa, São Paulo, em 2019. O estalo é o barulho do chicote de dois grupos de palhaços se enfrentando.

A internet também atualiza as brigas de folias para outro terreno, o das redes sociais. Aqui é o mestre Cláudio Xaxo, do morro da formiga:

[Mestre Cláudio não lembra casos atuais de vias de fato, mas sabe que pelas redes os palhaços brigam muito]

O jeito desbocado, as brigas e a bebedeira, no entanto, podem não ser nem mesmo o maior problema dos palhaços. Eu não achei nenhum registro escrito desse relato do José, mas é valioso:

[Palhaço faz pacto com o bicho. O pacto dele é com Jesus, santos reis e São Sebastião]

Pacto com o bicho…

A devoção à São Sebastião é um último elemento que vale a pena pontuar. Quem olha nos livros vai encontrar que a folia de reis sai no dia 25 e volta no dia 6 de janeiro, encerrando seus trabalhos. Isso não é exatamente verdade. Ao longo de todo o mês de janeiro, a folia continua atuante, visitando casas e reunindo os recursos para a festa de Arremate, que será o grande encerramento oficial para toda a comunidade. Só que em muitas cidades que tem São Sebastião como padroeiro, o arremate acontece ainda depois. Após louvar os Santos Reis, é preciso louvar o santo mártir.

[Cláudio Xaxo conta essa peculiaridade da folia fluminense]

Dizem que São Sebastião foi um capitão da guarda de Roma no século III, na época em que os cristãos eram perseguidos pelo império. Conta-se que ele era conhecido por levar conforto aos prisioneiros do Coliseu, dizendo que teriam a vida eterna no paraíso. Denunciado, foi amarrado a uma árvore e tido como morto após uma saraivada de flechas. Recuperado, voltou a agir pela libertação até sua morte derradeira.

Perguntei ao Cláudio a diferença entre a folias antes e depois do dia 6.

[Ele conta que os cantos mudam. Depois do dia 6, só louvação à São Sebastião]

E a bandeira muda?

[Não. É a mesma, mas ele a vira. Um lado é verde e branco e o outro é vermelho]

[Sobe música Folia para São Sebastião]

Passamos o dia inteiro aprendendo bastante sobre folias. E vou dizer para vocês, nessa hora eu estava me sentindo meio esquisito. Não tinha posição que me deixasse confortável, então achei que era coluna. Tomei dois relaxantes musculares e segui gravando.

[Sete horas da noite e nenhuma folia chegou. Eu acho que é um palhaço ali longe, mas é uma senhora]

Para eu me distrair nessas últimas horas, pedi para a Gláucia e o Rogério me contarem a história dessa Folia de São Fidélis de quem eles são tão amigos. Qual era o nome da folia mesmo?

[Gláucia e Rogério contam a história da festa do arremate. Quando chegaram pro evento, foram convidados com muita cerimônia para um quartinho nos fundos onde ficava um caixão. Eles tiveram certeza de que o mestre da folia, que já estava bem doente, havia falecido. O filho do senhor pede que eles levantem o véu do caixão. Temerosos eles o fazem. Debaixo do pano, frango assado. Dezenas de frangos que eles serviriam no almoço do dia]

Era 9 horas da noite e eu já tinha entregado os pontos quando ouvimos o som…

[O bumbo forte da folia toda. Vou descendo acompanhando]

A folia desce a rua em direção à praça, onde fica o presépio, eu vou acompanhando. Agora é correria. Eu consegui fazer um vídeo que pega um pouco da emoção desse momento, e está lá no canal do youtube do Colecionador de Sacis.

Na descida, um senhozinho se destaca ao nosso lado. Ele é o Mestre Messias, da folia da Boa Lembrança, do quilombo do Carmo. Ou contra-mestre, eu não sei se ouvi direito na hora.

[Mestre Messias fala que nunca conheceu seu pai, mas que ele era mestre de folia também. Hoje ele que toca a jornada. Com fé e devoção, Santo Reis fez a perna melhorar]

Ele é um homem negro, com farto bigode branco. O oescoço está cheio de guias, assim como o cajado que traz na mão. Uma pena que ele só se apresentaria no dia seguinte. Deve ser uma folia linda!

[Messias diz que já foi mordido por jararaca e se benzeu com o chapéu. Só com isso foi curado]

A noite ia avançada. Era uma profusão de cores, músicas e ritmos. O clímax do dia, mas eu cada vez pior. Não era coluna. Talvez fosse estômago? As farmácias estavam todas fechadas, então pedi um eno pra uma família que acompanhava a folia na frente de casa. A Gláucia e o Rogério vieram me avisar umas 11 da noite que a Folia de São Fidelis tinha chegado. Eu fui me arrastando para conhecer eles, mas fui.

No caminho, falei rapidinho com Mestre Anélio da folia Estrela do Oriente. Ele pediu pra eu falar com o Seu Gilson, o sanfoneiro. Nesse momento eu estava gravando encostado na árvore. Eu já não estava legal.

[Mestre Anélio fala que acha linda a bandeira, pois ela remete ao princípio do mundo]

[Eu falo que estou nas últimas, precisando deitar]

A folia de São Fidelis chegou e já precisava ir se apresentar. Pelo menos, com o palhaço deles, eu ia conseguir gravar.

[Gordinho de Itaperuna se apresenta. Ele é o palhaço que vai brincar pela folia de São Fidelis hoje]

Eu me escorei, apoiando o gravador contra a barriga e conversei com o Gordinho.

[Gordinho diz que ser palhaço é coisa séria. E que se com Deus é difícil, imagina se apegando a outras coisas]

Pronto, já deu. Era hora do arremate.

[Folia de reis sobe a rua. Eu estou deitado no carro, gravando pela janela]

Eu não fazia a menor ideia, mas estava tendo uma baita crise de pedra no rim. Terminei a madrugada na UPA com tramadol na veia. É mais um plot twist que eu não esperava para o episódio de hoje. Isso é coisa de palhaço.

[Eu falo, no carro, que estou passando muito mal. Mas estou feliz. Gravei a folia. Gravei o palhaço].

FIM DO PROGRAMA.

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Muito obrigado! Vocês ajudam a tirar o folclore da garrafa.

Esse podcast foi produzido por mim, Andriolli Costa, do colecionador de sacis. A arte da capa é de Bruno Brunelli. Os links e o roteiro deste programa estão na publicação em colecionadordesacis.com.br. Um abraço e até a próxima.

Bebam água!

[Na trilha sonora, uma pessoa exclama: Gente, que folia linda!]

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