Fogo de 51 – Conheça detalhes sobre o massacre que marcou a história dos Pataxó no sul da Bahia

fogo de 51.png

Por Andriolli Costa

Há quase 70 anos, a aldeia de Barra Velha, próxima a Porto Seguro na Bahia, teve todas as suas casas incendiadas. Os indígenas Pataxó, acusados de crimes que não cometeram, foram espancados, chicoteados, torturados e mortos pela Polícia local. Inclusive o cacique, então com 85 anos, foi surrado e preso mesmo quando já se sabia que o caso era todo por culpa da ação de brancos estelionatários. Esse triste marco na história do povo, que deixou tantos Pataxó desaldeados e desamparados pelo governo, ficou conhecido entre eles como o Fogo de 1951.

Eu ouvi pela primeira vez sobre o massacre na entrevista que gravei há alguns dias com Jaçanã, pajé Pataxó de 73 anos de idade, juntamente com sua filha, a professora Maria Aparecida da Conceição – mais conhecida como Paru, de 39, e que será publicada nesta quinta-feira 22 em Poranduba. Jaçanã tinha apenas seis anos de idade quando o massacre teve início, e não entendia direito o que acontecia. Quando escutou os tiros, achava que era seu tio disparando  em passarinhos conhecidos na Bahia como “suias”. Foi seu irmão que teve a astúcia de correr com ela para o mato.

A distância, os dois viram seus parentes rendidos pela polícia, amarrados uns aos outros. Sua tia com um talho na cabeça, sangrava em profusão. “Eles faziam os velhos carregarem as velhas nas costas, como cavalos. Quando se cansavam, eles que tinham que ser carregados”, relembra a pajé. Foram momentos de violência e humilhação que culminaram com um incêndio que devastou as terras de Barra Velha. Há inclusive relatos de estupros cometidos pelos oficiais.

O responsável pelo ataque foi o major Arsênio Alves de Souza, famoso comandante das forças policiais volantes da Bahia que quando tenente foi responsável pela morte do irmão mais novo de Lampião, Ponto Fino. Reproduzimos abaixo uma reportagem especial escrita pelo jornalista Nelson Schaun para o periódico baiano O Momento escrita em junho de 1951, republicada no jornal Imprensa Popular logo após a resolução da tragédia. O jornalista apelidou Arsênio de “O MacArthur de Corumbau”, no mais puro deboche, o que lhe rendeu alguns dias na cadeia.

Era época da Guerra da Coreia, e o general americano Douglas McArthur repetia sempre que empregava táticas estratégicas. Arsênio que havia enviado suas tropas para atacar os indígenas se deparou com um outro destacamento de polícia que seguia o mesmo plano. Desavisado, entrou em fogo cruzado por quase uma hora até perceber quem era o “inimigo” e então declarou ter feito uma retirada estratégica. Revelada a presepada, a imprensa lhe cravou o apelido. A frustração do major se voltou depois contra os Pataxó, mobilizando 15 homens com metralhadoras para atacar a aldeia.

Fogo51.png


 

Espancamento, prisão e morte de homens, mulheres e crianças

Minuciosa reportagem sobre o incêndio e massacre de uma aldeia pela polícia baiana – Inquérito promovido na assembleia contra o “MacArthur de Corumbau” – Tem todas as características de uma provocação a serviço dos grileiros que pretendem avançar nas terras dos caboclos

Em minuciosa e documentada reportagem de Nelson Schaun, publicada pelo matutino “O Momento” desta capital, são relatados os sangrentos acontecimentos de Porto Seguro, que a imprensa interessada em defender grileiros e latifundiários tem deturpado. Os fatos são narrados desde o início. Há dois meses encontrava-se no Rio o “capitão” Honório Borges, chefe dos caboclos da aldeia de Barra Velha, também chamada de Bom Jardim do Monte Pascoal, com o fim de pedir ao presidente da República ajuda para os caboclos. Abordado por um desconhecido, que se fazia passar por engenheiro a serviço do governo federal, ouviu dele que iria a Porto Seguro realizar uma nova medição oficial das terras de Monte Pascoal. Efetivamente, a 18 de maio, o suposto engenheiro desembarcou em Porto Seguro acompanhado de outro aventureiro que se dizia tenente do exército. Ludibriando os caboclos, os dois conseguiram arrastar alguns deles ao assalto da casa comercial do sr. Teodomiro Rodrigues Cerqueira em Corumbau. O comerciante foi ferido e a casa comercial saqueada.

Tiroteio com o destacamento

Esse foi o pretexto utilizado pela polícia, comandada pelo capanga nazi-integralista major Arsênio Alves de Souza para cometer um rosário de crimes selvagens na zona do sul a serviço dos grandes tatuiras. Espalhou-se a notícia do assalto, além de muitas outras de cunho alarmista, lançadas pelo major Arsênio, apelidado de “MacArthur do Corumbau”, e logo foram enviados contro os caboclos dois destacamentos policiais. O primeiro,comandado pelos sargentos Altino Calmón e Lourival José dos Santos, era constituído de 14 homens e partiu de Porto Seguro enquanto o outro partia de Caravelas, sob o comando do cabo Eugênio. Perto de Barra Velha, os dois destacamentos se encontraram. E na escuridão da noite, julgando ambos que estavam defrontando os caboclos, iniciaram um fogo cruzado que durou quase uma hora e que terminou com a fuga dos soldados de Caravelas em verdadeiro pânico, deixando armas e bagagens. Esse foi o único combate travado em Porto Seguro, conforme as declarações dos próprios sargentos Lourival e Altino.

Terror em toda a zona

O integralista Arsênio Alves de Souza aproveitou a situação para desencadear o terror contra os caboclos. Depois de tirotear a aldeia durante várias horas, incendiou todas as casas, aprisionou e espancou dezenas de homens, mulheres e crianças, levando-os para Caravelas. Os demais escaparam para a mata. O “capitão” Honório, homem de 85 anos, foi espancado a coice de fuzis até ficar desacordado. Não houve possibilidade de resistência dos caboclos, que estavam desarmados. Alguns possuiam apenas espingardas de caça, de carregar pela boca. O assalto à aldeia não passa de um massacre com o objetivo de avançar a propriedade de grileiros sobre as terras dos caboclos que foram praticamente trucidados, ignorando-se o número de mortos e feridos.

Assassinados os aventureiros

A expedição de Arsênio prosseguiu mata a dentro, perseguindo os dois aventureiros, o suposto engenheiro e o suposto tenente. Cercados e presos, com eles foi encontrada uma arma automática, tomada do comerciante Teodomiro Rodrigues, mas sem munição. Apesar de se haverem rendido sem resistência, foram assassinados friamente a tiros de fuzil, disparados pelo soldado Ambrósio e pelo guarda-linhas do Telegrafo Paulo Cruz, que serviu de guia ao destacamento. Uma jovem cabocla que se encontrava na cabana dos aventureiros, enganada por eles ou arrastada à força, também foi assassinada com um tiro de fuzil disparado pelas costas. Os documentos encontrados com os dois aventureiros os identificam como Antonio Barbosa e Jorge de tal.

Continuam as atrocidades

Com o caminho aberto para novas “razzias”, Arsênio continuou percorrendo as matas caçando caboclos, praticando as maiores atrocidades. Muitos foram amarrados às caudas dos cavalos e arrastados pela estrada. Divertiam-se os comandados do major integralista pondo selas às costas dos caboclos e passando a chicoteá-los. Em toda a zona do sul é geral a indignação contra esses atos de banditismo que visam intimidar os trabalhadores do campo, permitindo que caixeiros avancem mais profundamente seu domínio sobre as terras dos caboclos.

Repercussão na assembleia

Esses fatos tiveram repercussão na Assembleia Legislativa. Abriu os debates baseado na verídica reportagem de Nelson Schaun o deputado Carlos Anibal. Responsabilizou a polícia, que enviou ao local o major integralista Arsenio Alves de Souza para servir ao grande “caxixe” contra os caboclos. Mostrou que os caboclos desamparados pelo governo estavam no direito de defender suas terras, não importando saber se foram ou não enganados pelos dois aventureiros que bem podiam ser instrumentos dos ‘grileiros’. Outro deputado, Wilson Lins, diz que o massacre realizado pela polícia foi depoente e criminoso. Da bancada governista surgem apartes em defesa da polícia. Mas o deputado Wilson Lins, agitando um exemplar d’O Movimento, afirma que esse foi o único jornal que narrou a verdade, não se deixando levar pelas falsas versões da polícia e do governo. O sr. Carlos Aníbal apresentou um requerimento a fim de que a Assembleia promova um inquérito para apurar o que se passa no sul e responsabilizar os criminosos.

8 Respostas para “Fogo de 51 – Conheça detalhes sobre o massacre que marcou a história dos Pataxó no sul da Bahia

  1. Pingback: PORANDUBA 25 – Parteira Pataxó | Colecionador de Sacis·

  2. Caro Andriolli Costa, parabéns pelo artigo.
    Gostei muito do seu enfoque e da documentação apresentada.
    Cheguei a realizar uma pesquisa de campo com os Pataxó em 96 sobre o Mito de Juacema e ouvi alguns relatos sobre o Fogo de 51. A leitura do artigo me levou a ver uma questão importante, que foi a repercussão do evento junto a Assembleia Legislativa, fato que eu não tinha conhecimento.
    Abraços.

    Curtir

      • Meu povo é pataxó,meu pai contava muito sobre esse ataque. Minha mãe até hoje conta tbm…
        Foi muito triste esse massacre. E até hoje está tendo no sul da Bahia esses confrontos por parte de pistoleiros contratados por fazendeiros para destruir o nosso povo.( tuke-tukerrê).

        Curtir

  3. Meu nome e Ubiramir sou neto do Capitão Onorio, meu pai sempre falou dessas histórias mas sem muitos detalhes ate mesmo por que na época ele tinha seis anos, agora sabendo de detalhes de como tudo aconteceu com meu avô fiquei emocionado.

    Curtido por 1 pessoa

  4. Bom dia, gostaria de saber se vocês conseguem me encaminhar a reportagem completa produzida por Nelson Schaun no jornal O momento sobre o fogo de 1951.
    Obrigada.

    Curtir

Deixe um comentário