Uma exortação aos mitos no Congresso Nacional de Folclore

Por Andriolli Costa

O 18º Congresso Nacional de Folclore ocorreu entre os dias 25 e 27 de outubro de 2023. Desta vez, a sede para o evento foi Trindade, município distante cerca de 30 km da capital do estado, Goiânia. O evento congrega os principais nomes do campo de pesquisa e trabalho com folclore no país. Só para se ter uma ideia, foram justamente durante Congressos que foram debatidas e aprovas as notórias Cartas do Folclore, de 1951 e de 1995.

Eu tive o prazer de participar pela primeira vez do Congresso Nacional enquanto representante da diretoria da Rede de Estudos e Pesquisas em Folkcomunicação. Foram dias de mergulho profundo nas águas da tradição, onde ouvi e aprendi muito com os mestres que trilham este caminho há muito mais tempo do que eu.

Em minha participação na mesa “Tradições, saberes e fazeres populares” preparei uma fala que é uma incitação e uma resposta. Sabemos que, no senso comum, folclore é frequentemente reduzido a mitos e lendas. Por outro lado, no campo de estudos e pesquisas, o lendário acaba sendo escanteado dos processos de trabalho. Fala-se de danças, festas, medicina popular, pratos típicos…  A mim, falta a integração; a lembrança de que todos estes aspectos da árvore do folclore são feitos dos mesmos substratos: tradição e identidade.

Na minha apresentação, que transcrevo integralmente abaixo, faço uma exortação ao estudo dos mitos. E convoco para um olhar qualificado sobre estes fenômenos que, à nossa revelia, tanto tem a dizer sobre nós.

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Boa tarde a todos,

Enquanto diretor regional da Rede Folkcom, a rede de estudos e pesquisas em Folkcomunicação, cumprimento de início meus colegas de mesa; o presidente da comissão nacional de folclore, na figura de Severino Vicente, e a nossa anfitriã, Izabel Signorelli, pela gentileza e atenção em nossa recepção.

Meu nome é Andriolli Costa, sou  jornalista e pesquisador sul-matogrossense, e atualmente professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Há 15 anos, desde a minha iniciação científica na universidade eu venho me debruçando sobre uma temática que é escanteada mesmo dentro da ciência do folclore (a folclorística), que são os mitos e lendas do imaginário popular.

Sabemos do óbvio: mitos e lendas são apenas um dos galhos da grande árvore do folclore, que tem em seu tronco e raízes tradição e identidade. Porém, este galho, esta ramificação, diz respeito a aspectos da sociedade que, atravessados pelo sensível e pelo inefável, revelam um rosto na bruma…

E que rosto é esse? Falemos o óbvio novamente, mas introjetemos esta obviedade. Mitos, lendas, visagens, em última instância, não são histórias sobre monstros encantados, mas sobre nós mesmos. É comum que se diga que são aspectos do medo (como aponta Ruth Guimarães), mas isso é insuficiente. Os mitos cobrem todos os aspectos da experiência humana, plasmados na sociedade: não só nossos medos, mas nossos sonhos. Nossas angústias, e nossas esperanças.

O antropólogo francês Gilbert Durand nos incitava a entender o mito para além de simples figuras de linguagens. Essas metáforas vivas nos atravessam, direcionam, incitam, inspiram ações concretas com implicações materiais. Não é por acaso que Levi-Strauss falava que não lhe interessava como o ser humano pensava os mitos, mas como os mitos se pensam pelo humano – à sua revelia.

Entendi isso logo cedo, quando me deparei com o corpus de pesquisa que me conduziu ao mestrado. Nele estudei a cobertura da lenda dos tesouros enterrados no Paraguai. No país vizinho, o termo guarani plata yvyguy é utilizado para fazer referência ao imaginário de que haveria toneladas de ouro embaixo da terra por todo o território nacional. O ouro tem lastro antigo, remete as próprias reduções jesuíticas que conformaram a nação. Porém, plata yvyguy normalmente se refere a um marco histórico muito específico: a guerra. A guerra contra o Paraguai, que avassalou o país, deixando sua população a beira da miséria e com 80% de sua população masculina assassinada.

Uma constante em todo o mundo é que, diante de momentos de insegurança, o ouro e as riquezas das famílias de forma geral encontram salvaguarda no seio da terra. Guardados em símbolos da intimidade, do uso doméstico: as panelas, os potes, com a esperança do desenterramento após o fim do conflito, acabam sendo esquecidos ou perdidos com o desenrolar da violência.

Materialmente presos à terra pelos bens nunca recuperados, é comum que as narrativas mencionem espíritos: figuras que aparecem em sonhos, ou na forma de fogo fátuo, indicando o lugar do enterramento – mas apenas àqueles dignos o suficiente para reivindica-lo. Encontramos histórias semelhantes pelo Brasil seja no Pará com os tesouros escondidos durante a cabanagem, seja no nordeste com as botijas, no Rio Grande do Sul com os guardados na região das missões, em Mato Grosso do Sul com os enterros e, claro, no Paraguai como Plata Yvyguy.

Pois na minha pesquisa de mestrado, realizada entre 2011 e 2013, encontrei um dado inquietante: fazendo o clipping da imprensa paraguaia, ao longo de dois anos, foi possível notar que TODOS os meses ao menos uma pessoa morria ao procurar o ouro dos espíritos. As mortes são decorrentes de acidentes causados pela busca desenfreada pelo tesouro. Pessoas que cavam buracos fundos demais, caem e morrem no poço dos seus sonhos. A título de exemplo, durante a pandemia, aproveitando do isolamento social, um filho e seus pais, já idosos, iniciaram uma escavação na sala de sua casa. O buraco com 5 metros de profundidade era tampado, dia após dia, por um tapete. Determinada manhã, a mãe esteve desatenta. Pisou no tapete, caiu e quebrou o pescoço.

Paradigmático é, também, o acontecimento que me levou à pesquisa. Em 2006 o Ministro da Justiça do Paraguai, junto a um general, um dentista e um buscador de tesouros alugaram máquinas pesadas para escavar o parque Caballero, em Asunción. Eles acreditavam que ali estaria meia tonelada de ouro escondido. Quando a polícia chegou, e com ela a imprensa, o ministro justificou: eles tinham feito um acordo com a prefeitura. Se achado, metade ficaria para o poder público, metade para o grupo.

Talvez vocês pensem que este é um mero acontecimento anedótico. Não é. Ele é uma evidência extrema de um entendimento que já deveria ser ponto pacífico: atravessados pela potência do simbólico mítico, pessoas tomam e deixam de tomar ações, modulam seu modo de estar no mundo, VIVEM… E MORREM. O jornalismo, mesmo imiscuído pela racionalidade moderna, que privilegia o verificável, mensurável, objetivo e marginaliza o sensível dos processos intelectuais, é incapaz de ignorar o acontecimento. Negligenciar o mito é negligenciar parte concreta da sociedade. E isso vale para nós também.

Dizem que os espíritos indicam o lugar do tesouro escondido apenas para os poucos. No entanto, essa escolha não é meritocrática. É preciso ir sozinho, não ter pensamentos negativos, nunca cavar durante a siesta, rezar uma missa em homenagem à alma presa na terra… enfim. Quem não conhece a tradição e não tem bom coração, ao desenterrar plata yvyguy, não vai encontrar ouro, mas carvão. É que os espíritos trocaram o tesouro de lugar.

Vejam a potência dessa história: em um país devastado pelo pós-guerra, que ainda hoje afeta o imaginário paraguaio, o ouro que permite a mudança de vida é um prêmio muito maior do que o dinheiro. Não é equivalente a ganhar na loteria ou algo assim. Quem identifica e premia o indivíduo pelo seu conhecimento tradicional são os espíritos; seus ancestrais. É a tradição que permite a transformação.

No Brasil, talvez, não tenhamos algo tão extremo. No entanto, qualquer exercício mitocrítico – a leitura crítica das narrativas míticas – vai expor as estruturas potentes que as orientam. Pensem no que é Saci… Saci Pererê. Por certo que há várias versões; lastro do Yasy Yateré guarani, de exu e de Ossanhe dos negros, dos duendes domésticos portugueses, saci personifica essa síntese que nunca foi pacífica.

Saci fala, o tempo todo, de um mito de caos e liberdade. Caos, o vento da mudança, que vem trazer a variação para a vida humana. Na fazenda, faz perder colheita, estraga comida, bate nos cachorros. Na cidade, quebra transporte público, faz cair a conexão, derruba o disjuntor da luz elétrica.

Liberdade, pois saci é o vento de mudança, o redemoinho imparável e incontido. Traz a impostura do Trickster, o desrespeito pelo poder instituído. Sua perna única, em algumas versões, dizem ser resultado dos grilhões que lhe prendiam. A carapuça vermelha, como lembram os pesquisadores, faz referência ao piléu romano. Lastro imagético do qual compartilham os duendes europeus, inclusive os portugueses. Adereço este que era oferecido para aqueles que receberam a liberdade dos deuses.

Não é por acaso que, sempre que se fala em saci, logo se ensina a captura-lo. Restringir com a peneira, prender em garrafa; arrancar seu objeto de poder – a carapuça da liberdade – para desempoderá-lo. Tentativas fúteis de impor a ordem. Prendemos sacis para tentar controlar o caos de nossa vida. Seria a melhor alternativa? Quem traz o saci para perto e abraça o caos que, invariavelmente, atravessa a vida, pode ter nele um grande aliado.

Quando Luiz Beltrão propõe o conceito de Folkcomunicação, ele o faz inspirado nominalmente no trabalho de Edison Carneiro. E propõe a folk como uma estratégia que o povo encontra para comunicar, a partir de um momento que são alijados dos processos hegemônicos de produção e circulação de informação. Folclore, assim, é também, fluxo. Fluxo comunicativo. E também no lastro de Edison Carneiro, lembramos que o entendimento de folclore apenas como dinâmico, é insuficiente. É justamente por este caráter dinâmico, de resposta ao social, que folclore se torna tribuna e comentário do povo. Edison nos aponta que folclore é sim, uma força muitas vezes conservadora e de reiteração do status quo. Não tinha como ser diferente, vem da tradição, da raiz. Porém, graças a essa dinamicidade, carrega em si o germen da transformação. Da resistência. Isso está presente em maior e menor grau em todas as manifestações. Nos mitos também. Só que sua chave de leitura exige maior investimento, maior atenção. Do contrário,vamos considerar esse aspecto tão poderoso do nosso imaginário apenas pelas suas emanações pictóricas. Veja bem: pintar um saci, uma mula sem cabeça, no fundamental 1 faz parte do processo, constrói proximidade e afetos. Mas e depois?

Quando desvelamos os mitos, encontramos caminhos para discutir os desafios do presente. Negrinho do pastoreio e racismo, mula sem cabeça e o controle do feminino – que lhe nega a razão e monstrifica o corpo, pecaminoso…  tudo depende do eixo; o foco que vamos dar às narrativas. Podemos narrar uma história de mula com foco na sua maldição. Ou podemos centrar nas estratégias para sua libertação: colocar a mão nas chamas da culpa e retirar de lá o freio mágico que a restringe e subjuga.

Para que este trabalho não se restrinja a iniciativas individuais, é preciso comunicar. Responder às criticas de que folclore é anacronismo, cultura morta, etnocídio, ao expô-lo em sua potência de transformação e resistência; conhecimento presente, com lastro no passado e que orienta para o futuro. Como mais do que mitos e lendas, que se trabalham no dia do folclore – e em todas as instâncias. É mais pois folclore não se limita ao lendário, e é mais pois o lendário sem contexto, reflexão e crítica é igualmente negligente .  Reforço: não basta que saibamos, enquanto campo. É preciso comunicar, dialogar, responder. Investir num trabalho de divulgação científica do folclore. Uma divulgação folclórica, quem sabe.

Por fim, encerro com um depoimento pessoal: ao responder entrevistas sobre meu projeto, o Colecionador de Sacis, é muito frequente que me perguntem quando o folclore entrou em minha vida. Eu respondo que é da mesma forma que entra na vida de todo mundo: no seio familiar. Desde a barriga de minha mãe, quando precisou escolher uma almofada com uma colher ou com um garfo embaixo para saber se nasceria menino ou menina. E é assim com todos, folclore atravessa nossa vida do nascer ou morrer.

É claro que as pessoas perguntam isso querendo saber sobre as narrativas míticas. E justamente por isso eu faço este retorno. As visagens nos encantam, mas o folclore também é a espada de são Jorge atrás da sua porta para trazer proteção, as cantigas de ninar que embalam nossas crianças, os pratos típicos que reúnem nossas famílias. É a pílula de sabedoria popular, por vezes contraditórias, e aos quais recorremos hora para lembrar que Deus Ajuda quem cedo madruga,hora para lembrar que Apressado come cru.

Quando entendemos que tudo isso, assim como o saci ou qualquer outro mito , é feito do mesmo substrato, a tradição, a gente percebe que o nosso cotidiano é tão encantado quando essas histórias de visagens. Encantado de identidade. Quem nos escuta, entende, e expande. Mas para isso, nossa mensagem precisa chegar.

Obrigado.

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