Neste artigo publicado no Estado de São Paulo em 26-07-1945, o padre e historiador Luiz Castanho de Almeida, que escrevia sob pseudônimo, explora as origens da Cuca, a bruxa mais famosa do folclore brasileiro. Para ele o nome deriva da Coca portuguesa, que por sua vez deve sua alcunha aos Farricocos – os soldados que prenderam jesus após a Santa Ceia. É por isso que a Festa da Coca, onde São Jorge enfrenta um monstro em forma de Dragão (a própria coca), acompanha as procissões que relembram o martírio de Jesus. Aluísio Almeida deixou 22 livros publicados, vários sobre contos populares.

A festa da Coca
Por Aluísio Almeida
A Cuca dos paulistanos e paulistas é a mesma. O mesmo, o “Tutu Marambala”, porém, em Sorocaba e região correspondente é “Marambá”, por simplificação. Ambos, Cuca e Tutu, se substituem pelo “bicho”.
Das quadras que recolhemos, algumas nos parecem inéditas. Mas evidentemente são arranjos, ramos do mesmo tronco. É curioso ouvir os filhinhos dos operários falar em “cafezal“. Explica-se: os operários, sem distinção de raças, tem vindo na maioria do campo para a cidade – urbanização demais conhecida. E quanto aos imigrantes, pagos outrora pelo governo ou sociedades especiais, chegavam primeiro às fazendas.
1 – Durma neném / Que o bicho já vem / Papai foi à roça / Mamãe logo vem.
2 – Durma neném / Que o bicho já vem / Papai foi à caça / Mamãe saiu também.
3 – Durma neném / Que o bicho vem pegar / Papai foi à roça / Mamãe logo vem
4 – Tutu Marambá / Não venha mais cá / Deixa o menino / Dormir sossegado
5 – Cuca comprida / Saia do telhado / Deixa o menino / Dormir sossegado
6 – Durma neném / Que a cuca vem pegar / Papai foi à roça / Mamãe no cafezal
7 – Cuca, Cuca, Cuca / Já saia do telhado / Deixe o menino / Que durma sossegado
8 – Tutu Marambá / Não venha mais cá / Papai foi á roça / Mamãe no cafezal
9 – Tutu Marambá / Não venha mais cá / Que o pai do menino / Te manda malhar
10 – Bicho papão / Saia de cima do telhado / Deixa o menino / Dormir sossegado
11 – Durma neném / Que a cuca vem pegar / Papai foi à caça / Mamãe vem carregar
12 – Durma nenê / Que a mamãe tem que fazê / Lavá e passá / A roupinha do nenê

Os farricocos na Procissão do Fogaréu, em GO
No sul de Minas alguém diz Coca em vez de Cuca. É o nome proferido na Espanha e na Galícia e provém da coca ou capuz dos farricocos das procissões [N. E: Farricocos são os soldados que prenderam jesus na cruz na noite da Santa Ceia]. Especialmente em aldeias do Minho, não há muito, a procissão do Santíssimo exigia, como em quase todo o Brasil de Dom Pedro II, o acompanhamento da imagem de São Jorge. A esta não podia faltar o dragão por ele vencido. Em certos lugares, era uma espécie de serpente, mecanicamente arranjada sobre dois homens ocultos, e a chamavam a Santa Coca. Ela passou a ser Cuca, entrando aí outra mistura etimológica, da “Cucanha”, novela de origem italiana cujo principal personagem era um cozinheiro, tal como o Tutu, que é o negro velho corimba ou coroca, que envelheceu na cozinha.
Somente especialistas em filologia têm a última palavra em assuntos tão altos, mas a Cuca entrou já feita no folclore brasileiro, mais especialmente do centro-sul, talvez do planalto paulista, aonde primeiro vieram menos africanos e as influências dos castelhanos eram maiores.
Quando não havia luz elétrica, havia mais o escuro. E a criança pensava que no escuro estava a Cuca. Outras maiores e mais sabidas diziam-lhe: – “Não vá lá, tem Cuca!”.
Afundando tanto quanto possível na memória e experiência pessoal, não conseguimos concretizar esse mito, dar-lhe feições, olhos, vestes. É quase uma coisa. Muito vaga. Quase um espírito. Cuca não passa de tradução em português de um mito universal, que mora no escuro para as crianças já crescidinhas, e come as menores, que não querem dormir. “Cuca comprida!”.
Desde quando nasce o medo no coração da criança, a Cuca ou que nome tenha, faz a sua aparição dentro a pobre alminha inocente. O medo preexiste à Cuca. É somente por isso que a ama pode fazer entender-se, apresentando à imaginação infantil uma coisa que ela é capaz de perceber.

Cucu e Tutu Marambá no Sítio do Picapau Amarelo (2007)
Qual será a idade mínima em que a criança começa a ter medo? Conheço um caso concreto. O irmão maior de uma menina de dois anos e alguns meses de idade, ao fazer-lhe medo, apontara para a sombra de uns galhos na parede, sombra que o vento mexia. A criança olhava para a sombra e exclamava: medo, medo! Por mais que lhe mostrassem a árvore que ela não temia. Sua inteligência não podia ainda ligar causa e efeito.
Mas aquela letra só faz dormir de medo as crianças capazes de ter medo. Ora, o hábito de acalentar as crianças, pelo menos enquanto temos observado, é mais para as pequeninas de braço, ainda incapazes de compreender qualquer coisa. Elas dormem, pois, com a música, e sabe lá Nosso Senhor com o primeiro apontar de medo físico, animal.
Dentro deste mito generalizado da Cuca e Bicho Papão, cabem os outros que se encontram no Brasil e provindos das outras raças. Quando a criança não quer dormir podem vir pegá-la: o bicho, o tutu marambá, o saci, o caipora, o bicho paquera e o bicho ponguê, etc. Cada região tem os seus e há-os em todo o Brasil. Alguns destes pertencentes ao ciclo bandeirante do folclore nacional são também habitantes da mata, e crianças grandes deles têm medo.
O quibungo, lobo angolês de boca nas costas onde engole até exércitos, não é conhecido com esse nome, pelo menos atualmente e de um modo generalizado neste sul de São Paulo.
É preciso repetir: os primeiros povoadores lusos aqui entraram em contato com os índios e não com os africanos. Dai as formas anhangá, caipora, saci a que Souza Carneiro, grande autoridade no assunto, parece não dar muita importância em “Os Mitos Africanos no Brasil“. Ora, sendo maior a influência africana em Pernambuco e Bahia, é possível que seja mais rico em histórias de quibungo e seus derivados o folclore de lá.
Além daqueles duendes guaranis, o paulista traduziu a Cuca e outros muitos por bicho. “Durma neném, que o bicho já vem”. O bicho é palavra que serve para tudo. Para todos os animais. Bicho peludo, por exemplo. Na gíria atual, que pode ser antiga, pois parece ter feição cabocla: “Fulano é um bicho!”, “Aí, bichão!”. Bicho de pé. Bicho carpinteiro. Bicheira provinda da varejeira que, enfim, é um bicho. Especialmente a onça é um bicho… E “mata-bicho”…
Todavia, encontramos em Sorocaba uma história que pode ser comparada com a da “Menina e o quibungo“, colhida no Recôncavo africana em Pernambuco e Bahia, é possível que seja mais rico em histórias de quibungo e seus derivados o folclore de lá.
Além daqueles duendes guaranis, o paulista traduziu a Cuca e outros muitos por bicho. “Durma neném, que o bicho já vem”. O bicho é palavra que serve para tudo. Para todos os animais. Bicho peludo, por exemplo. Na gíria atual, que pode ser antiga, pois parece ter feição cabocla: “Fulano é um bicho!”, “Aí, bichão!”. Bicho de pé. Bicho carpinteiro. Bicheira provinda da varejeira que, enfim, é um bicho. Especialmente a onça é um bicho… E “mata-bicho”…
Todavia, encontramos em Sorocaba uma história que pode ser comparada com a da “Menina e o quibungo, colhida no Recôncavo baiano por Silva Campos. Trata-se de um cavaleiro, Dom Siriri, que a mãe da menina teimosa lhe dizia ser o diabo e que, pondo à garupa a menina – que estava fora de casa, levou-a por aí a fora até que, passando por uma igreja, o padre e padrinho da criança o desencantou com água benta. Enquanto era carregada a menina ia repetindo: minha mãe bem me contava, bem me dizia, que Dom Siriri… Dom Siriri respondia: “cala a boca menina, que manda Dom Siriri”.
Ora, na história do quibungo baiano, a menina teimosa é raptada também e ia repetindo palavras parecidas. “Eu bem te dizia que não andasse de noite”, responde a mãe. Há muita semelhança. No final, quem vence o quibungo é a avozinha da menina, que atira no tal uma tachada de água quente. Água quente dos africanos pagãos, água benta dos cristãos.

Quibungo
Na linguagem popular baiana, quibungo é macacão peludo que come crianças. Nossa caipora é um bicho com feição de homem, peludo, e no qual as balas não acertam ou não ferem. Mas ele é mais um “amolante” dos viajores na mata do que coca-crianças.
Enfim, já uma outra melodia muito sentida, repetindo-se com as mesmas palavras, para acalentar as crianças. Apenas isto: “Neném, neném tutu”. Mas esse neném é pronunciado à francesa, quase “ana”. A toada, melancólica a mais não podia ser. Sol, lá, Sol, Si, Lá, Sol. Quantas vezes não se nos marejaram os olhos ao vermos alguém embalando qualquer netinho na rede, ou carregando-o com a cabecinha no ombro e dando-lhe palmadinhas ritmicas nas costas!
Pensamos que assim como a Cuca portuguesa só de nome se transformou no Tutu africano, a música dessas melodias é ainda a portuguesa que nos vem através dos mares. Mário de Andrade reconheceu a influência do canto-chão gregoriano em nossos canto populares religiosos ou não. O “durma neném” é muito parecido com o “Eu vos adoro” que ainda se ouve em nossas igrejas, não só nas capelas da roça. Para sentir essas semelhanças não é mister estudar muita coisa e ser grande maestro. Basta ouvir os mesmos cantos profanos em festas de São Gonçalo ou noites de São João. Ou pedir a alguma velhinha que vos cante o Senhor Amado. Somente que ela vos dirá que ajoelhe-se. É o ponto em que o misticismo no canto e na letra toca o sublime e, ante o sublime, se ajoelha.
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