Está no ar mais um episódio do podcast que produzo para o Mundo Freak! Serão 10 episódios do Popularium publicados quinzenalmente, onde vamos abordar com profundidade mitos e lendas brasileiras. Neste programa, falamos sobre os compadres do rio: negros e caboclos d’água. E impossível, ao tratar destes seres, não falar também dos encantos do Velho Chico.
Confira o Popularium! Folclore brasileiro como você nunca ouviu. Ouça aqui.
Essa história não se passa em uma cidadezinha desconhecida, daquelas onde a luz elétrica ainda teima em não alcançar. Também não aconteceu em uma noite de lua cheia, não ocorreu com algum amigo de um amigo meu, e nem se deu em uma época muito, muito distante.
Não, esta história aconteceu nas margens do Rio São Francisco, tendo como palco de um lado a cidade de Juazeiro, na Bahia, e do outro a de Petrolina, em Pernambuco. No ano de 2003, o artista plástico Ledo Ivo instalou na margem baiana uma estátua de 12 metros retratando um nego d’água, criatura conhecida entre o folclore dos barranqueiros.
Em 2012, financiado por um empresário local e com autorização da prefeitura, instalou uma nova estátua, desta vez na margem pernambucana, e retratando a Mãe D’água. As cidades, já ligadas por uma ponte, passaram a estar ligadas também pela representação física do imaginário do rio.
Desde a sua instalação, as estátuas dos protetores das águas foram alvo de críticas de grupos cristãos, especialmente pela confusão entre religião e cultura popular: Negro D’água passou a ser visto como um demônio. Mãe d’água, por sua vez, foi confundida com Iemanjá – e, por isso, também demonizada. Em 2012 Osinaldo Souza, vereador do PP, afirmou em sessão na câmara que a estátua era uma blasfêmia contra Deus:
“Na Umbanda, Iemanjá significa a Deusa das Águas. Mas só existe um Deus no universo e a Ele pertencem todas as coisas”, revoltou-se. “Aquilo é uma aberração, um demônio, que nós, católicos e evangélicos, não vamos aceitar”.Quando outros vereadores insistiram que a estátua buscava homenagear a cultura da região, rebateu: “Alguém já leu a Bíblia para dizer que não estou falando de cultura? Não tem mais nada cultural que este livro. Agora, Iemanjá não é cultura”.
A polêmica ganhou ainda mais força a partir de outubro de 2015, quando o vereador Zenildo Nunes, do PSB de Petrolina, atribuiu a falta de chuvas na cidade a presença da estátua. Logo depois, dois teólogos e pastores evangélicos entraram com um pedido no Ministério Público para a retirada das duas estátuas do São Francisco. Como blasfêmia era insuficiente, a patrulha trouxe novos argumentos: suposto uso indevido de dinheiro público e violação da laicidade do estado – uma vez que figuras religiosas estariam sendo representadas em áreas públicas.
Na prática, o que se percebe é o uso de legalismo como mascaramento de preconceito e intolerância, em ações que levam invariavelmente ao apagamento da cultura popular e da própria identidade de um povo.
Já falamos da Mãe D´água no terceiro episódio de nossa série, e sabemos que ela já fazia parte do imaginário indígena desde o século XVI – bem antes de qualquer conotação religiosa. E quanto ao Negro D’Água? Teria alguma coisa de demônio? Remédio contra tamanha ignorância é a informação.
Neste programa, vamos dissecar o imaginário popular, refletindo sobre o que ele evoca no simbólico. Assim, veremos que estes mitos e lendas, em última instância, não dizem sobre monstros encantados, mas sobre nós mesmos. Eu sou Andriolli Costa e este é o Popularium.
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