Por Câmara Cascudo

Lehmann-Nitsche
Fui amigo de Lehmann-Nitsche quase vinte anos. Dos seus 200 trabalhos devo possuir a metade. Nunca o vi. Só uma vez mandou seu retrato, um retrato sem barba e sem ruga, sem os óculos rituais do “herr” (professor). Gabei-lhe a mocidade fotográfica. Respondeu: “Nolito judicare”: não julgueis… Morreu com 66 anos, abril de 1938, no doce Schoneberg, bairro de Berlim, aposentado do serviço do Museu de La Plata, na Argentina, sua “tenda árabe de trabalho”, desde 1897. Quando faleceu, podia citar meio cento de sociedades culturais em que era sócio. E condecorações. E uns 500 mil amigos espalhados pelos continentes. Foi um trabalhador típico, tenaz, obstinado, diário. Teve o processo bem alemão da minúcia, do detalhe, da riqueza bibliográfica, da exaustão. Uma sua monografia é um depoimento completo, profundo, absoluto, sobre o assunto. Não sei como arranjava ele tempo para ler tanto e qual a técnica de conservar em ponto idôneo todo aquele imenso material catalogado.
O padre Carlos Teschauer, jesuíta sapientíssimo, também alemão, também apaixonado pelo folclore, publicara depois de anos de investigações e leituras o “Avifauna e flora nos costumes, superstições e lendas brasileiras e americanas” (Livraria do Globo, Porto Alegre). Quando Lehman-Nitsche divulgou seu ensaio sobre as “Três aves gritonas”, o padre Teschauer escrevia-me, assombrado: “Como teria ele ocasião para reunir tal monte de informações bibliográficas, tal multidão de livros raros, de folhetos esgotados, de prospectos desconhecidos?”.
Lehmann-Nitsche não deixava para seu continuador senão o direito do comentário.
Aposentado, restituído a Berlim, o professor ficou descansando noutro trabalho. Fez um curso de folclore na Universidade de Berlim, o primeiro e único da Europa, até 1934. E sua biblioteca americanista, uma biblioteca que mataria de inveja Karl von den Steinen, está hospedada no Ibero-American Institut de Berlim, para consultas gerais.
Professor lustre, Lehmann-Nitsche era um companheiro de inesgotável complacência. Pequenas perguntas minhas tornavam-se temas de pesquisas difíceis pela Alemanha e o velho mestre caçava bibliotecas e arquivos, escrevia a museus e batia em dezenas de portas para enviar a um anônimo sul-americano uma carta magistral, ensinando tudo. Juntando eu algumas notas sobre o príncipe Maximiniano de Wied-Neuwied, dirigi a Lehmann uma consulta. Dei-lhe, sem querer, uma série de encargos. Dois ou três meses depois, recebia uma documentação preciosa, endereços, indicações do paradeiro das coleções levadas do Brasil, em completo desacordo com as fontes oficiais de informação que eu obtivera. O que fosse impossível conseguir para mandar, em original, vinha fotografado. Assim mandou fotografar todo o artigo de Fred. Ratzel sobre Wied Neuwied na “Allgemeine Deutsche Biographie”, de Leipzig, no tomo XXIII, publicado em 1886. O mesmo fez com os brasões dos Wied, com os velhos almanaques de Gotha, esgotados. Merece que recorde sua bondade, só comparada ao meu atrevimento.
Nasceu em Rodomitz, Posen, “Germânia”, como ele escrevia orgulhoso do “clan” em 8 de novembro de 1872. Doutor em Filosofia em Friburgo no ano de 1894, terminou seu curso médico, em 1897, em Berlim e Munique.
Foi chefe do departamento de Antropologia do Museu de La Plata e professor titular da mesma matéria em 7 de julho de 1897. Professou também Antropologia na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires. A cadeira de Antropologia argentina era “avis rara in terra allena” em todo continente sul-americano…
Dois estudos seus receberam prêmios em Paris. O “prix Godard” e o “prix Brocca”. Suas pesquisas sobre a formação pampeana e o homem fossil da República Argentina, divulgaram-no. O alemão que se afirmara antropólogo e arqueólogo sisudo e sabedor, era o mesmo que catava nos lábios das velhas camponesas as “adivinhações” e publicava o erudito volume sobre as “Adivinanzas Rioplatenses”. A dedicatória é assim: – “Talvez muchos argentinos de hoy no sabran prestarle mayor atencion: dedico, pues, la primeira parte de mim FOLK-LORE ARGENTINO al PUEBLO ARGENTINO DE 2010!”…
Seus estudos, amplos e complexos, são indispensáveis e claros. Sobre o templo do Sol em Cuszco, sobre a Mitologia sul-americana, coleção original e sugestiva de depoimentos de indígenas argentinos, sobre as tradições do dilúvio, inúmeros ensaios de folclore que a revista da Academia de Córdoba publicou em sete números, Lehmann-Nitsche pode interessar grande número de técnicos, especialmente da Europa do Norte e Leste, para esse material novo e vivo nas terras americanas. O arqueólogo se fixou em livros como “Coricancha”. O antropólogo tem as páginas mestras nos exames sobre os índios Chiriguanos, Chorotes, Matacos, Tocas, Vilelas, ìndios da Patagônia, deformações cranianas, a trepanação pré-histórica, vinte outras teses de palpitante curiosidade.
No meio desses preciosos argumentos de cotejos com os índices cranianos de toda a parte, com permutas de notas com gente da Finlândia e da Alemanha, dos Estados Unidos e do Japão, surgia uma carta para mim, perguntando se o Lobisomem brasileiro comia casca de caranguejo ou se o Cobra Norato só aparecia nos rios do Pará.
Como estudante, fixador do folclore sul-americano, Lehmann-Nitsche é inesquecível. Podemos não aceitar suas conclusões. Podemos responder aos seus argumentos. Ninguém, como ele, terá interesse maior, amor japonês pelos traços insignificantes, tudo recolhendo e honestamente divulgando, para um conhecimento que antes de sua ação cultural era mínimo. Os nossos mitos, sendo em sua maioria comuns às terras da Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, enfim, aos ibero-americanos, mereciam-lhe particular atenção. Vivia a perguntar detalhes e a lastimar a ausência de uma associação brasileira que se dedicasse a esses estudos.
Lembro-me de sua resposta alacre quando pude enviar-lhe o volume dos depoimentos paulistas sobre o Saci Pererê, as notas sobre o Caipora pelo nordeste e os monstros amazônicos Mapinguari, Capelobo e a Caipora fêmea espécie de Caamanhã. Mandou-me notas que facilitaram a articulação de vários mitos e várias tradições nossas com os países vizinhos. Tinha sempre planos de escrever séries de livros, sistematizando todas as suas buscas, arquitetando a árvore genealógica desses fantasmas das matas e rios.
Todos esses motivos eram explicações para sua existência continua de esforço. Estudou e pesquisou sempre, incansável, otimista, pronto a auxiliar, animar, trocar livros e informes, viesse de quem viesse o pedido. Recordo que, numa sua carta, dizia-me ter tido a mesma resposta para duas perguntas iguais, ambas chegadas no mesmo dia e vindas dos extremos da terra. A minha, de Natal. A outra de Abo, na Finlândia. Em fevereiro de 1938, numa breve carta, terminava com a frase popularmente afetuosa em Buenos Aires: — Adiós, viejo…
E foi, realmente, adiós…
Excelente publicação. Você poderia, por gentileza, informar a referência desse texto? Grato.
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Artigo publicado no DIário de Notícias em 21/05/1939!
http://memoria.bn.br/DocReader/093718_01/39387
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