
Por Andriolli Costa
Frente ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, dois nomes são invariavelmente lembrados como motores do movimento que ali deslanchava: Mário e Oswald de Andrade, unidos pelo mesmo sobrenome e por uma relação mútua de admiração. Os laços de amizade sincera, entretanto, não tardariam a se desgastar. O rompimento definitivo aconteceu em 1929, e durou até o fim da vida do autor de Macunaíma.
Os motivos para tanto não podem ser resumidos a um só fato. Entre as causas mais levantadas destaca-se o crescente desconforto de Mário com as atitudes de Osvaldo: sempre intempestivo e bonachão, atacando e debochando do amigo sem antever as consequências. O desagravo de Mário já se mostrava em um poema com título pouco sutil, que teria sido inspirado pelo outro: “Ponteando sobre o amigo ruim”.
No texto, entredentes, o eu lírico fala de um ex-amigo que era capaz de caminhar despreocupadamente pelos labirintos das complicações, insensível aos machucados que deixava nos que ficavam em seu caminho. Já o autor não conseguia: sofria e quedava incapaz de prosseguir. Por fim, anunciava:
Você… é possível que ainda me chame de amigo…
Mesmo perdendo um bocadinho de asa
Pousa no meu espinheiro e inda pode voar depois.
Mas eu, eu sofro, é certo.
Porém, já não sou mais amigo de você.
Se as coisas esfriaram, a situação toda chega à gota d’água em 1929. Naquele ano, Oswald já havia publicado em sua Revista de Antropofagia uma série de indiretas para o amigo. A derradeira foi um artigo no mínimo sugestivo: “Miss Macunaíma”. O texto começa falando sobre a visita da “mais genuína representante da antropofagia feminina no Brasil” à cidade de Natal. Mário de Andrade, naquele momento, estava em viagem com Câmara Cascudo pelo Rio Grande do Norte.
O texto, que traz em resumo uma série de disparates, foi apenas uma desculpa para insinuar atributos de “feminilidade” ao companheiro modernista. Era Oswald ridicularizando publicamente da sexualidade de Mário, que faz-se crer ter sido bissexual.
Mário ficou profundamente machucado. Em carta que envia à Tarsila do Amaral, quando esta ainda era esposa de Osvaldo, faz questão de lembrar que não era a primeira vez que o tema era usado para lhe atacar. “As acusações, insultos, caçoadas, feitos a mim não me podem interessar. Já os sofri todos mais vezes e nem uma existência como a que eu levo pode se libertar deles”. Entretanto, ser alvo de chacota por parte de um amigo é algo que lhe atinge ainda mais. “Isso me quebrou cruelmente“, sintetiza.
Dono de uma vasta documentação epistolar, encontramos menções à briga nas cartas que Mário endereça a diversos escritores amigos. Para Manuel Bandeira, em 1933, demonstra que o rancor ainda permanecia:
“Eu odeio friamente, organizadamente, a quem certamente não ofereceria um pau à mão, pra que ele se salvasse de afogar. Você está vendo que sou assassino em espírito! Mas é que eu me gastei excessivamente com ele”.
Ainda assim, no ano seguinte, escreve com um pouco menos de ódio para Carlos Drummond, também um Andrade:
“Pensei longamente no Osvaldo de Andrade. Está aí um com o qual eu jamais farei as pazes enquanto estiver na posse das minhas forças de homem. Não é possível. Há razões pra odiar, e talvez eu tenha odiado mesmo no princípio. Mas foi impossível, percebi isso muito cedo, perseverar no ódio. É besteira isso de falar que o ódio é uma espécie de amor, não é não. Como tinha de recontinuar no amor tive de abandonar o ódio. […] o que hei de fazer, não faço pazes, não sei se existe etc., mas a verdade é que eu quero bem ele ainda mais”
A reaproximação, realmente, nunca aconteceu. Oswald bem que tentou, mais de uma vez inclusive. Ainda assim, a querela ficou como um daqueles desconfortos que a gente espera um dia resolver e vai empurrando com a barriga, empurrando com a barriga… Até que chega o dia que não tem mais jeito. Um infarto leva Mário de Andrade aos 51 anos de idade, e Oswaldo sofreu enormemente pela reconciliação impossível.
Abaixo trazemos a íntegra do artigo que marcou o rompimento entre os dois. Este e outros textos da Revista de Antropofagia podem ser encontrados aqui. Leia aqui também um artigo sobre as cartas de Mário sobre Oswald.

Miss Macunaíma
Passageira do gaiola Caiçara, esteve ontem em Natal, durante algumas horas, a mais genuína representante da antropofagia feminina no Brasil. É uma tapuia bem acordada, conversadeira e inteligente, que vem realizando uma sensacional descida ao mando da famigerada tribo Apurinã, que no inferno verde conquistou a liderança dos redutos antropofágicos pelo despotismo de suas façanhas. Avisados de sua passagem pela nossa terra fomos encontrá-lo a bordo, no sentido de colhermos algumas impressões para a Semana Indígena que o Jorge Fernandes está pedindo de 30 para inaugurar entre nós.
Como não soubéssemos mapear a linguagem geral fomos em companhia de Nunes Pereira, já costumado às batidas pelas malocas dos índios amazônicos. A fim de não chatearmos muito a esplendida cabocla Apurinã, organizamos, então, um inquérito de perguntas para que ela nos respondesse mais facilmente. Uma espécie de entrevista não ao jeito primitivo daquelas que a História do Brasil sem Z reconta de onde em onde para tapear os infelizes passadistas. Mas, sem a máscara aziaga da gramática e com aquele desembaraço cutuba do Manú quando mastigou três poetas da Dindinha Lua e disposto a engolir também todos os demais curumins literários.
É exato que a Apurinã bancou de grande camarada, pois de sua conversa podemos formar um certo plano de reconstituições primitivistas marcantes para a atualidade do perobismo nacional. Movimentamos pontos curiosos de Antropofagia, bem incisivos dessa descida, em que o tacape e a baba da manipueira ferem menos que os olhos de curiango da tapuia que vinha vindo…
Recostada ao longo corrimão todo crispado de cogumelos, a Indígena espreitava o panorama da cidade de Natal, quando os nossos passos transmudaram-lhe o jeitão caracteristicamente selvagem. Sapecávamos já a saudação ritual da tribo, ao que ela nos retrucou, escancarando a antologia ameríndia dos seus dentes fortemente verdes amarelos, que quase nos tomaram o pulso de literatos antropófagos.
Interpelada que foi a feiticeira craúna principiou respondendo às nossas perguntas, tão avidamente, que nem formiga saúva destalando boneca de capim panasco.
Antes de tocar o fim dessa entrada pela grande Colônia do Pau-Brasil quero dizer quem sou e de onde venho. Moro na confluência do verde Solimões com o Preto, numa estreita região somente desvendada pela valente espécie Apurinã.
O meu nome primitivo estava em dialeto tupi sendo por isso quase impossível de ser compreendido. Já estava eu me pondo uma muchachita, batoneira das mais longínquas malocas, quando fui forçada a me esconder durante meses no tijuco dos igapós como se fosse um caroço de tucumã.
Para gazear a noite era preciso untar o meu corpo com tabatinga e rezar emborcada aos manes de Rudá. Tempos depois, surgiu na planície a figura exótica de um alemão barbudo de nome Theodoro Kock Krünberg, que logo conquistou a amizade dos Cururii em troca de anzóis e contas de vidro. Em companhia dos próprios índios o alemão Theodoro conheceu em dez anos toda a nação dos Pamaris, Apurinãs, Ura Rekenas, Yahamas, Macus e Tuyucas, curando a gente de impaludismo e ensinando o linguajar do estrangeiro.
Na exploração que fizeram margeando o Xingu, comecei a sentir maleita no coração por um moço brasileiro com quem brinquei muito escanchada na veloz ubá. Foi ele que me ensinou muitas coisas, sempre consultando a uma mulher complicada e renitente a quem chamava de Gramática.
Passei noites inteiras triturando sintaxes, advérbios, substantivos, períodos, vírgulas, parênteses, artigos e pronomes que engasgavam muito mais que espinhas de peixe d‟água doce. Soube, então, que havia um paíszão muito bonito, atulhado de montanhas, de rios enormes, onde as mulheres faziam que nem as tapuias, lambuzavam a cara de açafrão e espritavam os homens.
– Que sentido teremos de dar a sua viagem tão brasileira?
Por Rudá! Eu venho vindo numa descida antropofágica, por esses riscos litorâneos de porque me ufanismo nacional, doidinha para chegar a Galvestão afim de não perder as comidas. Desde que todas as tribos que vieram da planura dos Andes, dos wigwans comanches, das cabeceiras da Patagônia, dos confins do Rio Negro, das terras roxas de Piratininga, do séquito dos Cataguazes, das pirâmides brancas de Mossoró, do vale do Baixo Assu e da cuité do Janduí se reuniram, cerimoniosamente, para me elegerem Miss Macunaíma, a história desses concursos de beleza quase que me tem feito bater a passarinha.
Trago comigo a mascote do pajé Araribóia para escumar os meus instintos na Parada Universal da Carne. Pretendo comer todas as misses, bem cevadinhas, com todas as suas faixas, os seus presentes, as suas fichas e cânones. Procurarei abiscoitar os oitenta contecos de cada uma e com uma mão de cinzento capaz de fazer inveja aos trusts do Mata-Razo ajudarei a Liga Universal da Antropofagia. Serei Miss Macunaíma do Chuí ao Prata, mesmo sem o voto secreto do finado Democrático. As misses serão mastigadas supinamente, com molho de cumaru, mingau de tacacá, refresco de ananaí, resina de martim cererê, tudo isto num quiriri medonho.
– Está disposta a realizar a descida sozinha?
Sim e não. Daqui da taba potiguara carregarei o Perna de Pau, um mulato esplendido que corta tudo quando está de murici. Fala e destala de tal maneira que o seu melhor livro será a obra de sua vida afiada: a arte de fazer inimigos. Tocando em Pernambuco procurarei Ascenso Ferreira Catimbó que terá de me arrumar o Macobeba, esse esquisito lobisomem de quatro olhos de fogo, rabo metade de leão metade de cavalo, unhas de gato do mato, que vem fazendo correrias por Beberibe, Encruzilhada e Pina, assanhando tudo, devastando e remexendo tudo.
Xingando de contentes pela entrevista sem nome que acabávamos de pôr em letra redonda, apertamos a mão bronzeada de Miss Macunaíma ao ritmo sonoro da despedida guarani:
– Yasu tupana iruno!
Otacílio Alecrim (Um batuta de Natal)
(Revista de Antropofagia nº 12, junho de 1929)
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