Monstrum – Mapinguari é a preguiça gigante?

Por Andriolli Costa

Em abril de 2022 fui convidado pela professora Emily Zarka, da Arizona State University, para participar como colaborador de um vídeo de um projeto de divulgação folclórica que ela apresenta no canal Storied: a série Monstrum. Nela, mitos do mundo todo são analisados à luz de depoimentos e pesquisa, com um grande investimento gráfico. Para a participação eu recebi algumas perguntas para responder, mas achei melhor produzir um texto, traduzi-lo e gravá-lo da melhor maneira possível para deixar a explicação mais completa. Aqui está meu texto, na íntegra, e logo abaixo o vídeo com trechos dele que foi ao ar no canal. Boa leitura!

Mapinguari é a preguiça gigante?

De início temos o nome. É difícil cravar com certeza qual a etimologia do nome Mapinguari, afinal uma língua fundamentalmente oral pode dar origem a interpretações diferentes simplesmente a partir dos modos como se pronuncia e se escuta cada palavra. A principal suposição diz que o nome Mapinguari vem do Tupi-Guarani, e significa “Coisa com os pés torcidos” ou “Aquele que tem os pés torcidos”. O que é interessante porque essa, nem de longe é a característica mais marcante do mito do Mapinguari nos dias de hoje.

Eu falo em hoje, mas observando historicamente não se pode dizer que o Mapinguari seja um mito dos mais antigos. Podemos ter este entendimento uma vez que os cronistas e naturalistas que estiveram na Amazônia nos primeiros séculos de colonização nunca registraram nada parecido em suas publicações, diferentemente do que ocorreu com outros mitos há muito estabelecidos como a boiúna, os curupiras ou caiporas.

Em verdade, os primeiros relatos de mapinguari vão datar da virada do século XIX para o século XX, coincidindo com o primeiro ciclo da borracha na Amazônia – em que a extração do látex levou a um boom econômico e populacional na região norte do país. E é justamente entre os seringueiros que encontramos alguns dos relatos mais antigos sobre o mapinguari: uma criatura gigantesca, semelhante a um símio com garras enormes e boca ainda maior e que perseguia e devorava os homens.

Grande indício de sua presença é o grito bestial que ecoa pela mata, acompanhado do barulho de galhos partindo. Seu cheiro também é muito referenciado, por vezes lembrando o do morcego, por vezes o de alho podre. Persegue indistintamente os seres humanos na mata e os devora, ora comendo primeiro a cabeça, ora aos pedaços.

Mas, afinal, como é este mapinguari? Sua aparência e habilidades são, a bem da verdade, uma grande amálgama dos mitos Bicho-Homem. As suas inúmeras descrições vão tomar emprestado tudo aquilo que o tornaria bestial. Dizem que é humanoide, mas gigantesco – variando de três a seis metros de altura –, parecendo um símio, com o corpo coberto de pelos longos e couro impenetrável. Esta invulnerabilidade às vezes entra na oralidade como se ele tivesse pelo corpo casco como o da tartaruga, couro reptiliano como o do jacaré ou mesmo pedras no peito e nas costas.

Seus pés, que mencionamos anteriormente, são por vezes virados ao contrário – como o curupira e outros seres da mata que usam desta estratégia para confundir os seus perseguidores. Outras versões, hoje as mais comuns, dizem que suas pegadas são redondas como mãos de pilão ou o fundo de uma garrafa – como um outro mito brasileiro, o pé-de-garrafa. E, também, como o pé de garrafa, há variáveis que falam que teria um pé só ou um só lado do corpo. Por isso falamos em amálgama.

Sua boca gigantesca, localizada no abdome, é frequentemente descrita como disposta na vertical – à semelhança do Quibungo, monstro tradicional entre os negros que vieram escravizados ao Brasil, com a diferença que a boca do quibungo fica nas costas. Ambas, no entanto, pela sua posição, remetem invariavelmente a uma vagina dentada. E é o que nos leva a pensar: o que ou quais tipos de comportamento o mito castra entre os homens?

O mapinguari possuí às vezes dois olhos, mas constantemente fala-se que possui apenas um, o que ressalta sua bestialidade. Se ter dois olhos é o padrão da medida humana, e o terceiro olho é o da vidência, da excepcionalidade, as imagens de um único olho vão remeter à bestialidade, à violência descontrolada dos que não distinguem adequadamente certo e errado, amigo de inimigo, isto ou aquilo.

Quanto ao seu ponto fraco, alguns dizem que é justamente no único olho, ou na boca – que se abre quando ele grita. Mas a descrição mais comum é a que fala do umbigo como sua fraqueza: uma constante entre os mitos bicho-homem. Resquício do cordão umbilical, é aquilo que liga o monstro à sua origem humana.

Mas então Mapinguari tem origem humana?

Depende. Eu já chego lá.

Quem procura sobre Mapinguari na internet invariavelmente vai se deparar com duas vertentes de validação científica de sua existência: a paleontológica e a criptozoológica. A primeira vai supor que o imaginário do mapinguari seria uma subjetivação do encontro com fósseis da megafauna que habitou a Amazônia, como o mastodonte (stegomastodon waringi), cujo crânio poderia explicar um gigante ciclope, e principalmente os megatérios – as preguiças gigantes que teriam desaparecido há 11 mil anos.

A versão criptídica vai supor ainda que as aparições do mito viriam do contato de indígenas com megatérios ainda vivos. Reforçando a ideia de que o mito seria uma distorção (ou pior, uma compreensão ingênua) do encontro com o animal.

Eu aconselho calma.

Existem duas questões que emergem deste raciocínio. A primeira é que, se o lastro fosse assim tão antigo, já teríamos registros de mapinguari ou mitos semelhantes antes do século XIX e XX – o que não acontece. O segundo é que é extremamente problemático condicionar a crença de tantos grupos populacionais a esta validação científica, como se eles estivessem autorizados a acreditar no mapinguari apenas por conta dos megatérios efetivamente já terem existido.

Não podemos reduzir o mapinguari à preguiça-gigante. Fazer isso é ignorar todo o arcabouço simbólico que atravessa esse mito bicho-homem. E é aí que voltamos as suas origens.

Temos a tendência de entender que mitos que partilham características comuns as do mapinguari são apenas outros nomes para a mesma coisa. Na Wikipedia encontramos uma série de equivalências confusas. No site em inglês fala-se em Juma como seu sinônimo. Trata-se do mito de um indígena gigante e peludo, mas não equivalente ao mapinguari. Pé Grande ou Sasquatch brasileiro são, por sua vez, aspectos dos mitos de bicho-homem, mas que não traduzem quem é o mapinguari.

Já na Wikipédia em português temos algo ainda mais complicado. Fala-se que ele também é conhecido como Isnashi/Inashi – que é um nome nunca mencionado nem em relatos, nem em artigos de pesquisadores ou em notícias de jornal da época, o que levanta a dúvida sobre sua veracidade. Ainda assim, com a internet sendo essa “atestadora da verdade” contemporânea, começamos a encontrar Isnashi sendo usado em hashtags de artistas ou mesmo em operações policiais…

O que falta há muitos é o entendimento de que o nome é algo muito importante para a compreensão de um mito, uma vez que vai dizer respeito ao modo como determinado povo vai compreender a entidade em relação com sua sociedade.

Entre os indígenas Karitiana, por exemplo, encontramos dois nomes possíveis para criaturas semelhantes ao mapinguari: Kida Harara, que significa “Besta que ri” – uma referência provável à sua boca, e Owojo, que significa “avô materno”. Vejam que interessante: pensar na criatura como seu avô materno é reconhecer o mapinguari como um igual. Como um parente, só que perdido.

No registro dos seringueiros, da virada do século 20, falava-se que o mapinguari era um líder indígena que ao morrer se transformou em bicho. Em registros recentes, ainda encontramos relatos falando de que ele poderia ser um pajé que, após a morte, se encantou. São exemplos de como por vezes aqueles com mais conhecimento sobre o mundo dos encantados – ou em posições de destaque na sociedade – são os mais propensos a cruzar o outro lado.

Mapinguari parece representar este medo atávico daquilo que nos desumaniza, nos torna monstruosos, cegos para o sofrimento afligido, castrador de nossas ações e desejos. Ainda assim, ao final, o umbigo sempre estará lá para lembrar que debaixo de todo o couro, cascos, pelos que nos tornam insensíveis, estará lá o espírito humano.

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