
Por Andriolli Costa
Em 22 de agosto de 1846, a palavra folk-lore foi usada pela primeira vez. O termo, que só seria conceituado mais a frente, caminhou muito ao longo destes 176 anos. Lastro de um impulso romântico, em seu princípio era pouco mais que o resultado de um desejo de conservação das curiosidades populares frente aos avanços da modernidade. Em seu bojo, característico de seu tempo, havia ainda um grande nível de distanciamento entre sujeito e objeto. Entre o pesquisador e o povo.
Há décadas isso tem mudado. E não somos nós mesmos povo? Não somos embalados por cantigas de ninar, protegidos por simpatias, nutridos por histórias? Carregamos as sabenças do passado, e as evocamos cada vez que lembramos que Deus ajuda quem cedo madruga; que não adianta afobação, pois apressado come cru; e que não há coerência em casa de ferreiro. Em maior ou menor grau, somos atravessados por folclore do nascer ao morrer e à nossa revelia.
Reconhecer este nosso entrelugar, dentro (pela vivência, pelas raízes) e fora (pela consciência exigida pela análise), é um caminho sem volta e fundamental para a transformação do campo. Este é o caminho que eu mesmo trilho: os sacis fazem parte da minha história e da história da minha família há gerações, e quando escrevo sobre eles estou falando sobre cultura, sobre Brasil, mas também sobre mim. Sobre meus pais, meus avós e os avós deles. Sobre a terra em que cresci e as lembranças que me formaram.
Não escolhi estudar sacis, eles me escolheram.
Por certo que o termo folclore tem sido subutilizado em uma série de contextos. É tido como sinônimo de mentira ou de falsidade; como falso saber ou conhecimento pré-científico. Há aqueles que entendem o termo como “cultura morta” e passadismo, ou mesmo como algo ligado a culturas alheia – de povos indígenas ou interioranos. Isso quando não resumem folclore à mitos, lendas ou narrativas infantis.
Existem aqueles que julgam o problema ser o termo, mas eu discordo. Podemos trocar folclore por qualquer outra palavra, mas sem trabalharmos as mentalidades que carregam consigo o desprezo pelo saber tradicional e pelas oralidades, o resultado será o mesmo. O caminho é múltiplo: educação de crianças, jovens e adultos; formação de multiplicadores sensíveis para as temáticas da cultura popular; divulgação folclórica na forma de produção de conteúdo nas redes para reaproximar o público; transformar espaços institucionais (inclusive a Academia) para torná-los mais diversos e capazes de responder aos desafios do presente.
Isso, por sorte, vem sendo feito. A tendência contemporânea é complexificar cada vez mais os estudos da área. Nos Estados Unidos, a Folclorística tem sido tensionada especialmente pelos estudos latinos, que incorporam leituras de gênero, raça e classe. Isso gera um movimento extremamente interessante que repensa a relação sujeito-objeto para uma sujeito-sujeito. Mais do que isso, os novos estudos vão reconhecer o lugar de outras epistemologias na pesquisa folclórica. Folclore como forma de conhecimento ligado ao sensível, ao simbólico e às identidades.
No Brasil, devemos muito ao trabalho de Edison Carneiro, que desde a década de 1960 pautou, por um lado, as discussões reiteradas pelas cartas de folclore e, por outro, o desenvolvimento da folkcomunicação. Ele entendia folclore nascia enquanto estratégias culturais (e, para seu contemporâneo Luiz Beltrão, comunicativas) de resistência. Resistência à hegemonia dos poderosos e ao sofrimento cotidiano. Resistência ao esquecimento. Ele nos convidava, há 60 anos atrás, a entender o caráter revolucionário do folclore – algo que ainda hoje precisamos retomar.
Neste Dia do Folclore, vamos celebrar não o campo acadêmico-institucional do folclore, mas sim aquilo que o fundamenta. Vamos celebrar o povo – todos eles – pois, assim, celebraremos também a nós. Que possamos entender esta como sendo uma palavra coletivo. Como “enxame”, como “alcateia”. Folclore é folclores, culturas populares num plural sempre polissêmico. Feliz 22 de agosto para todos!
Andriolli Costa é jornalista, pesquisador e consultor em folclore brasileiro. Trabalha, estuda e escreve sobre o tema desde 2008.