Folclore do nascer ao morrer

Arte de Ricardo Albano

Por Andriolli Costa

Agosto é um mês de vários epítetos. É o “mês do desgosto” para os que seguem a rima, “mês do cachorro louco” para os que tentam explicá-la, e o mês do folclore para os que simplesmente se deixam mergulhar na poesia.

Mais que um mergulho, eu me senti afundar na poesia do povo logo no segundo domingo de agosto, quando recebi o aviso sobre um funeral. Se eu quisesse acompanhá-lo, deveria me apressar: ele já estava começando e seguiria apenas até as duas da tarde.

Não, eu não conhecia o finado e nem mesmo sua família; o convite veio de um amigo em comum. Sendo eu um recém-chegado ao Rio de Janeiro, seria a oportunidade perfeita para conhecer uma tradição afro-brasileira mais do que especial: o gurufim. Velório acompanhado de samba.

Cada sociedade tem sua própria forma de lidar com a morte, tanto para quem vai quanto para quem fica. E entre a comunidade negra no Rio de Janeiro, a chamada brincadeira do gurufim era um jeito frequente de animar os velórios no início do século XX. Dizem que gurufim é corruptela de “golfinho”, e a diversão consistia em, durante a cantoria, perguntar se peixes e cetáceos estavam presentes para homenagear o morto. “Tubarão veio? Baleia veio? E o gurufim?”. Por derivação, a brincadeira virou metonímia da festa toda.

Pois naquele dia todos os peixes, grandes e pequenos, estavam presentes para celebrar mais um companheiro que partia antes do combinado – jovem de tudo. A feijoada mais saborosa que já comi no Rio de Janeiro foi oferecida logo depois, feita com o tempero do acolhimento. O primeiro prato, é claro, foi servido para o dono da festa.

Era festa, mas ainda era luto, As pessoas se abraçavam e choravam dolorosamente ao som da percussão. “Quero chorar o teu choro / Quero sorrir seu sorriso / Valeu por você existir, amigo”. O samba era catarse da saudade, dando aos enlutados as palavras para expressar sua passagem.

É o folclore da morte, a cultura popular que facilita o luto.

Na semana seguinte, com as proximidades do 22 de agosto, passei pela rotina anual de atender às efemérides da pauta jornalística. E, novamente, me vi às voltas com uma inescapável pergunta: “Quando o folclore entrou na sua vida?”. Ciclos de início e de encerramento da vida circundavam meu espírito quando botei em palavras pela primeira vez algo que sempre acreditei. E a conclusão é evidente.

Folclore entra na minha vida como entra na vida de todos: antes mesmo do nascimento, pelo seio familiar. Ele está no medo de não atender aos desejos da grávida, fazendo o filho vir ao mundo com o rosto de comida; na barriga pontuda que indica nascimento de menino; nas cantigas de ninar que nos embalaram e até na cuca que nos ameaça nas noites insones.

Na escola aprendemos a chamar de folclore apenas mitos e lendas. Eles são fascinantes, é claro, mas são apenas sua face mais reconhecível. Folclore está no buquê apanhado que indica o futuro casório, nos dedos escondidos em figa ao mentir uma promessa, na alegria de ver passarinho verde, na certeza de que o sol será inclemente em manhãs de cerração.

Folclore é passado, presente e futuro; nos atravessa do nascer ao morrer. Está no toque de mão e nos dois ou três beijinhos ao cumprimentar alguém na chegada, e estará também presente na nossa despedida. Com ou sem gurufim.

Deixe um comentário