[Clipping] Encontro de mitos – Fomos de Fusca caçar saci

No Dia Nacional do Fusca, relembre a aventura de Autoesporte a bordo do clássico VW em Cunha

Fotos: Guilber Hidaka

Reportagem originalmente publicada na Revista Autoesporte #562

Era uma vez, cravada entre as serras paulistas da Bocaína e do Mar, uma cidade repleta de besouros. Certa manhã, os “bichos” foram convidados a sair da toca, e espalharam seu zunido mecânico por ladeiras íngremes e ruas de paralelepípedo. Com olhos arredondados, vinham das cercanias de São Paulo, do Rio de Janeiro e das Minas Gerais. Eram Fuscas! E tomavam as ruas de Cunha, distante 220 km de São Paulo. Conhecida como capital nacional do velho Volkswagen, oferecia o cenário ideal para camuflar um Fusquinha 67, que não estava lá para desfilar. Com placa da vizinha São Luiz do Paraitinga, tinha uma missão particular: buscar outro ser folclórico que, dizem, vive pras bandas de lá.

Enquanto mais de 800 carros partiam em “Fusqueata” pelas ruas cunhenses, esse Fusca sorrateiro fugia do comboio e do roteiro. Com tantos outros circulando para lá e para cá, encontrava o pretexto perfeito. Como quem aproveitava o encontro de Fuscas só para rodar por ali, ele retornava a sua cidade de origem, no coração do Vale do Paraíba. O objetivo? Encontrar o Saci.

Eu, que não sou boba nem nada, não ia encarar essa jornada só com boa vontade e fé. Por isso, como nos livros de Monteiro Lobato, em que Pedrinho pede ajuda ao Tio Barnabé, também fui atrás de um guia, que ao longo do dia me ajudaria a procurar o menino que pula em um só pé. Assim foi que Benedito Virgílio, o Ditão, se pôs a me ajudar. Como seu Fusca estava no conserto, com o motor para ser refeito, ele chamou um membro da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), Eduardo Coelho, para auxiliar. E lá fomos nós, no Fusca do Dudu, o Saci achar.

O besouro parecia voar sobre os buracos que a gente via. Acostumado ao trabalho rural no Vale do Paraíba, vencia fácil o asfalto judiado, enquanto Ditão contava “causos” em rima. Aos 56 anos, o apicultor e contador de história falava da primeira vez que vira o Saci, puxando o fato pela memória: “Quando tinha 6 para 7 anos, saí com meu pai para a mata. Quanto ele tava entretido cortando lenha, veio um rodamoinho e fez aquele barulho, ‘tchiiiiiiiii’. Eu ‘oiei’ pra trás e vi um negrinho, igual um saguizinho, me fazendo careta”. Ditão o seguiu e o pai foi-se embora para casa, contar que do filho não tinha sinal. Mas a mãe nem se “aperriou”, sabia que era o Saci, afinal. Dudu, por sua vez, somente evidências do moleque viu. “A gente ouvia muita história, ao lado do fogão de lenha, contadas pelos avôs. E a gente chegava a acreditar, ia dormir mais cedo para não arriscar de ver. Mas, na verdade, não é a gente que vê o Saci. É ele que aparece pra gente por seu querer”, diz.

É também por gosto e querer que ele apronta traquinagens. E começou com as suas em nossa primeira paragem – na Cachoeira Grande, rumo a São Luiz, em Lagoinha. Vup, caí de um tombo no chão, assim que saí do Fusquinha. Na mesma hora, Tadeu Rocha, um dos donos da propriedade, o Saci via. “Aqui, ele aparece à noite ou à tardinha. Foi a primeira vez que veio de manhã, acho que da chegada de vocês sabia.”

Se ele tinha passado por ali, haveríamos de encontrar. Por isso, decidimos com o Fusca o riacho cruzar. Logo pensamos que a travessia não traria dificuldade, já que o carro de São Luiz sobrevivera à enchente que em 2010 tomou sua cidade. Dudu gostou da aventura e assumiu o volante. Acelerou rio adentro, levantando água sobre o capô. E a água nem foi problema, mas, sim, o banco de areia onde o Fusquinha atolou. Uns oito homens que estavam por ali, sem cansaço, logo tiraram o carro do atoleiro no braço. Enquanto isso Ditão notou um pé de vento na beira do matagal. Apontou, pensando que era o Saci. Mas nem sinal.

Na hora da saída, o Fusca apagou no aguaceiro. De novo, um bando de homens o acudiu, tirando o carrinho ali do meio. Dudu, sem preocupação, fez logo o carro pegar. “O excesso de água no escapamento fez com que ele afogasse. Mas bastou ligar a parte elétrica, que eu fui controlando a aceleração na mão e pronto.” O Fusca mostrou mais um ponto que o faz resistir naquele lugar: a mecânica simples, que não precisa de especialista para consertar. Para Ditão, tudo fora obra do Saci. Mas Tadeu Rocha disse que com carro o negrinho nunca fez sacanagem: “Então, não sei se foi Saci ou apenas barbeiragem”.

Fosse o que fosse, era hora de continuar. Logo chegamos a São Luiz e paramos para nos alimentar. No “bar da Alice”, reduto de “sacizeiros”, nos deparamos com uma foto que deixa a todos cabreiros: um Saci em frente à igreja, na praça principal. Há quem diga que foi por causa da aparição que na enxurrada a igrejinha ruiu, triste final. “O pessoal gosta de botar a culpa no Saci. Como faziam as escravas, quando deixavam o feijão queimar e sabiam que o patrão ia ralhar. Os pais, às vezes, nem querem que os filhos percam o medo. Porque qualquer coisa que as crianças façam de errado, podem dizer que o Saci vai pegar”, fala Ditão na porta do bar.

Reza a lenda que para o Saci pegar é preciso uma peneira de cruzeta no redemoinho jogar – pois em todo rodamoinho, há um Saci a girar. Como era domingo, estava fechada a barraca do seu Miguel. Mas foi só bater na porta que ele nos vendeu peneira e chapéu. De lambuja deu um pito, como o que o Saci usa para fazer fumaça e os bichos espantar. Nossa esperança era que com o besouro a tática não fosse funcionar. Aos 68 anos, seu Miguel, ressabiado, disse que Saci nunca viu e nem quer ver. Depois, ainda sem jeito, confessou que, criança, só viu o moleque no vento. Depois, não voltou a rever.

Naquela hora também ventava. Era tempo de retomar a missão. Antes da partida, Saci fez outra reinação – sumiu com a chave do carro, que ninguém achava, não. Enquanto a gente procurava, Ditão dava nós na palha e dizia: “Tô te amarrando, Saci, devolve a chave pra mim”. Passaram-se sete minutos e ela apareceu, simplesmente assim. Ele ensinou: faz o nó três vezes, que em sete minutos o objeto aparece. Mas solta depois os laços, senão o azar vem vezes sete.

Sete é o número do Saci e a distância a que estávamos do rancho de Ditão. “Eles aparecem sempre no meu pomar.” Estava claro: tínhamos de ir para lá, então. Entramos no Fusquinha, com o assoalho molhado, sem o lugar do carona e o encosto do banco arriado. Digo a Dudu que o carro está bem rodado. “Fusca não tem quilometragem, tem somente estado. O meu até está bom. A parte externa do motor é de 1.300, mas a interna é tudo 1.600. Se pisar muito, estoura o câmbio ou o motor. Então, quando ele quer andar demais, tiro o pé do acelerador.”

Eu, ao contrário, para vencer os morros de terra, fundo pisei. Sofri com o câmbio, a segunda marcha sempre arranhei. Parei o Fusca na ladeira e como o freio estava ruim, Ditão arrumou um calço para mim. Saí do Fusca paramentada, com o chapéu e a peneira pronta para ser emborcada. No pé da árvore, uma folha chacoalhava. É bem ali que um Saci costuma aparecer – normalmente, na madrugada. “Ele tá aqui perto”, avisa animado Ditão. A gente esperou e o menino chamou. Mas ele não apareceu, não.

Partimos para a última tentativa, num taquaral. É nesses bambuzeiros, que o Saci nasce, afinal. De repente, Ditão apressou o passo. Apesar da mata densa, tentei ir em seu encalço. Do nada ele parou e disse: “está ali, ó”, mas não vi. Na mesma hora, não é história, ao meu lado senti alguém. Olhei depressa, cismada, mas nem vulto avistei. Ditão garante que era o danado. E disso, não duvido. Como avisa o Saci em um verso: “De pensar, eu já existo”. Confesso, voltei ao Fusca decepcionada. Mas logo fiquei conformada: só de dirigir o besouro, para mim, valeu a jornada.
A cidade do Fusca

Há uma boa explicação para que tantos fusquinhas resistam em Cunha. Grande parte  do município, 11º maior em extensão territorial no estado de São Paulo, se espalha por terrenosmontanhosos, cercados de estradas de terra. Assim, para garantir o acesso à zona rural, muitos moradores o escolheram como carro oficial. O fato de ter tração traseira também faz dele mais que um veículo de passeio, uma ferramenta de trabalho fundamental. Há mais de 2.200 fuscas emplacados na cidade–uma média de uma cada 13 habitantes.

A população de besouros cresce quando chega o fuscunha, festival de verão. No dia do encerramento, ocorre uma carreata de fuscas, a fusqueata. Foi nessa data que AE passou por lá e encontrou não só moradores, mas amantes do carrinho de todo lugar. Gente como Waldir Alves de Carvalho, com um modelo 65 reformado. Mais do que pelo Gps e dvd, ele chamava atenção por uma tampa de acrílico sobre o motor ter. “Achei o fusca perdido em um galinheiro. ´Paguei R$ 9 mil e já investi o dobro. Mais de R$ 25 mil por ele ofereceram”, conta o dono.

Ele não vende por nada. Assim como a paulista Ana Carolina Baptista, de 29 anos. seu amor pelo fusca contagiou a família – até o marido que não curtia o besouro se rendeu e tem o seu. “o bomé que o carro nunca me deixa na mão. Às vezes dá problema no cabo do acelerador, mas eu resolvo com uma ‘xuxinha’ de cabelo”, conta.

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