[#Saci100] Gláucia Santos Garcia – Entre Pontos

Saci3

Texto da Revista Saci Pererê – 100 anos do Inquérito. Clique aqui para ler e baixar.

Por Gláucia Santos Garcia

A tarde estava quente e abafada, o céu muito azul. Passava das três horas. Sua única companhia era o gato. No entanto, ele estava entregue à letargia de um entardecer calorento. “Dureza é ter que carregar um casaco de peles permanente neste tempo”, pensou.

Em meio aos resmungos, crochetava. Nos últimos tempos, retomara o crochê, em parte por necessidade de se livrar do excesso de lãs entulhando o cômodo misto de escritório-ateliê-biblioteca, como por precisar extravasar sua criatividade.

Na verdade, havia um terceiro motivo. Precisava manter a mente ocupada com uma atividade mecânica, porém criativa. Os últimos tempos não tinham sido leves para ela. Problemas de toda ordem, domésticos, profissionais, econômicos. Estava esgotada, no limite de sua capacidade intelectual e com os nervos em frangalhos.

A cada laçada da agulha, pensava na vida e, entre pontos e fios, fazia sua análise e autocrítica. O apartamento onde vivia, localizado numa grande floresta urbana, era o ambiente ideal para a sua reclusão voluntária. “Crochê é assim: depois que se faz a base de correntinhas e as primeiras carreiras, o resto sai quase mecanicamente, um pouco no piloto automático”. Por esta razão, julgava aquela atividade ideal para seu momento pessoal. Não era tão absorvente a ponto de impedir suas reflexões, mas, ao mesmo tempo, funcionava como uma espécie de tranquilizante.

Por vezes, em meio às linhas e cores, divagava tanto que sobrevinha a sonolência. Foi assim naquele dia. Sentia os olhos pesados, quase fechando. Decidiu fazer um café. Deixou o trabalho sobre a mesa e foi à cozinha.

Encheu a chaleira. Quando foi acender o fogo, sentiu um vento pouco mais forte do que uma brisa. Pensou: “que ventinho bom! Está tão abafado…”. Pegou filtro, pó e demais apetrechos. Armou mecanicamente a traquitana em cima da pia. “Fazer café também é uma atividade automática…”. Olhou pela janela e tornou a ver aquele pássaro pardo, penachinho vinho na cabeça. Há tempos ele andava por ali, sempre sozinho. Deixou tudo pronto e voltou para a sala a fim de retomar o trabalho, enquanto esperava a água ferver.

Mal pôs os pés no corredor, olhou para o chão e viu o cachecol em confecção completamente embolado, as lãs embaraçadas, tudo revirado. Foi direto procurar o gato.

Não fora ele, pois dormia profundamente na mesma posição há mais de uma hora. “Deve ter sido o vento ou eu mesma quando levantei…”. Lá fora, os pássaros cantavam alvoroçados. Teve, então, a sensação de que seu canto estava diferente, pareciam mais agitados ou, talvez, alegres. “Besteira…”. A água ferveu. Levantou, conferiu o sono felino e foi preparar o café.

Enquanto coava, ouviu um ruído parecido com um estalido. “Nesse daí eu nunca havia reparado. Também, aqui tem tanto bicho e barulho estranho que nem dá para saber se vem de ave, de inseto…”. Aspirou o aroma do café fresco: “Perfumoso, como se diz.” Sorriu, encheu a caneca e foi para a sala.

O gato continuava ressonando em seu canto do sofá. “Como pode dormir tanto? E ainda dorme à noite…”. Mudou a estação do rádio, bebeu uns goles de café. Voltou ao crochê e o trabalho estava lá, intacto. Procurou a agulha, não achou. Olhou em volta, no chão, no caminho até a cozinha, no tapete debaixo da mesa. Nada. “Mas onde se enfiou essa danada?” Esquadrinhou tudo novamente, agora olhando em cima e debaixo dos móveis. Inútil. “Ai, ai, ai… outra agulha que perco”.

Deu de ombros. Foi pegar o estojo. “Quase não resta mais nenhuma. Perdi todas.” Olhou para uma, de osso, com o cabo quebrado. “A da vovó. Há tanto tempo não uso. Será esta.”. Aquela era especial.

Recomeçou os pontos. A agulha ia e vinha, dando laçadas em total liberdade. Os pensamentos fluíam de igual maneira, alternando lembranças antigas e novas, sem muitas elaborações, enquanto os pontos se acumulavam no cachecol. Foi pegar outro café. Resolveu fazer um pingado. Abriu a caixa de leite. Azedo. “Como estragou? Estava novo.”

Voltou ao crochê. Talvez devido ao estímulo da cafeína, os pontos se sucediam com extrema fluidez. O tecido crescia, com suas voltas e reviravoltas em carreiras retorcidas. Já não ouvia a música do rádio, tamanha a concentração. Era como se pensamento, mãos, agulha e fio estivessem totalmente conectados. Mal ligou ao ouvir novamente aquele canto esquisito, parecia um trique, mas não era de grilo. Nem tentou olhar para fora.

O gato se espreguiçou no sofá, levantou e foi para o seu lado, cabecear sua perna.

— Tá com fome, né? Vem.

Foi pegar a ração na cozinha. Nem bem entrou e exclamou:

— Ah, Ilich! O que você aprontou? —, bronqueou. O gato escapuliu como um raio. Ele conhecia muito bem aquele tom de voz.

O café que restou no filtro estava espalhado pelo chão. “Ele nunca tinha feito isso. Sempre há uma primeira vez”, resmungou, enquanto foi pegar a vassoura. Limpou a bagunça. O gato foi se chegando devagar, sondando se a barra estava limpa, quando teve certeza que sim, miou.

— Vem cá, seu bobo. Coisa feia que você fez. Deixa eu limpar suas patas…

Estavam limpas. Sem sinal de café. Não estranhou. “Gatos são animais extremamente limpos, todo mundo sabe. Aprontou a lambança e já se limpou.” Fez um cafuné. Foi para a sala, pegou uma bolinha e arremessou. O bichano correu para dar o bote e começou a perseguição. “É o instinto.”

Deixou o caçador se divertindo com a caça e retornou, novamente, ao crochê. Não perdeu o ritmo. Crocheteira, instrumento e fio, continuavam em total integração. Não ouvia mais o som das patadas felinas, muito menos o trique trique, agora mais insistente e próximo. Não deu atenção.

O gato caçava furiosamente, mas a bola estava abandonada num canto. Foi ver o que era. À primeira vista, pensou ser um dos ratinhos de brinquedo. Andavam sumidos, pois ele gostava de escondê-los. Logo a seguir, estranhou a cor. Ele não tinha ratos assim. Quando se abaixou para pegar o objeto, não o reconheceu. Era uma espécie de bonequinha, muito mal feita, deformada até. Por pouco dava para identificar. Era completamente disforme e não havia proporção alguma entre cabeça, tronco e membros. Um pedacinho de renda encardida fazia às vezes de saia. Ela julgou que tamanha desproporção e feiura eram consequências da caçada. “Onde será que ele arranjou isso? Deve ter caído do apartamento de cima”.

Não queria pensar muito. Necessitava fugir de complicações. Voltou aos pontos. Tentou relaxar e regressar à espécie de transe anterior. Não conseguiu. Aquela tarde estava muito mais estranha do que o habitual. “Estou ficando louca. Esse isolamento não está me fazendo bem.” Olhou para o céu, ainda azul. Olhou para a agulha em sua mão direita, inerte, sem laçada nem ponto. Lembrou-se da avó, com quem aprendera tanto. Começou a se lembrar de coisas que ela costumava fazer. O café da tarde, religiosamente. Coisas que falava. “Também resmungava como eu!”, riu. Foi assim, no meio dessa turnê vespertina ao próprio passado que recordou de ouvi-la dizer, muitas vezes, sempre que sumia algo: “Deve ser coisa do saci!”.

Estremeceu. Não era possível. Ou seria? O vento, o pássaro, o estalar, o leite, a boneca tosca… Não era religiosa. Não tinha rosário em casa, nem peneira. Também não ia desperdiçar uma garrafa de vinho. Ainda mais agora, em tempos de vacas magras. Algo veio à mente. Não titubeou.

Por hábito e para manter a lembrança da avó sempre viva, gostava de ter sempre palha benta em casa. Era bom para proteger, ela dizia. Quando ela era via, sempre iam à igreja no domingo de ramos, pegar as folhas de palmeira e aguardar a bênção do padre. Depois, dobravam tudo e guardavam até secar. Foi à gaveta, pegou um pouco. Deu um nó, meio incrédula no resultado. Outro nó e, ainda, um terceiro. Ouviu um grito de dor:

— Aaaaaaaaaaiiiiiiiii!

Quase não acreditou quando viu surgir de trás da porta um negrinho, carapuça vermelha, pulando numa das pernas. Não, ele só possuía uma perna. Sim, ele só possuía uma perna! Apertava o baixo ventre com as mãos, praguejava e se contorcia de dor. Ela respirou fundo e, calmamente, falou:

— Devolve!

Ele quis enrolar, disse que não sabia. Apertava as pernas (mas só tinha uma perna!). Ela esticou a mão e mostrou a palha com os nós. Falou: — Não vou soltar.

— Tá bom! Tá bom! —, disse ele contrariado, gemendo. Sumiu por um instante e voltou com várias agulhas. E mais, seis ratinhos e outros brinquedos do gato, quatro canetas, dois lápis, uma borracha, um rolo de fita adesiva, cinco lixas de unha, quinze alfinetes, um anel, três brincos descasados, oito CDs sem capa, um pendrive e vários pés de meia.

— Quer sua boneca de volta? —, ela perguntou.

Ele balançou a cabeça em negativa.

Então, ela delicadamente desfez os nós e o deixou ir saltar e aprontar em outro lugar. Era da natureza dele fazer estripulias. No fundo, ele era do bem, assim como ela. O mundo é que andava estranho.

Enquanto a noite começava a cair, agradeceu silenciosamente à avó. Ela sempre dizia que quando se perde algum objeto de forma inexplicável, só pode ser coisa do talzinho. Então, é só pegar uma folhinha de palha benta e dar três nós. Assim a gente amarra o pinto dele.

Não quis racionalizar. A vida estava complicada demais para isso. Procurou o gato e o encontrou adormecido, como de hábito. “Esse daí sabe das coisas. Ô vidão!”. Pegou mais uma caneca de café.

Foi ao escritório, ligou o computador e abriu o processador de textos. Começou a digitar:

A tarde estava quente e abafada…

———

Gláucia Santos Garcia é historiadora e fundadora do site Jangada Brasil no Rio de Janeiro/RJ.

Deixe um comentário