PORANDUBA 75 – Folclore e Saúde

Capa sobre artes de Walmor Corrêa

Por Andriolli Costa

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Bem-vindos à nossa Poranduba, o podcast do Colecionador de Sacis sobre as histórias fantásticas do folclore brasileiro. E no programa de hoje, gravado em plena pandemia do coronavírus, tomo um tempo para refletir sobre folclore e saúde nos seus mais variados aspectos: o imaginário das doenças, o valor da medicina popular, o que diferencia práticas tradicionais de cura daquela fake news que você recebeu no whatsapp e, é claro, como folclore pode servir como resistência aos males que nos cercam nessa quarentena. Leia o roteiro na íntegra ao fim da página.

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Apresentação: Andriolli Costa
Edição: Andriolli Costa
Vinheta de Abertura: 
Danilo Vieira Battistini, do podcast O Contador de Histórias.
Logo do podcast: 
Mauro Adriano Muller – Portfólio.

– Canto de abertura e encerramento do povo Ashaninka.
Nesse episódio você também escuta: Rhaissa Bittar e Soul Brasileiro cantando cada um sua versão de Jorge da Capadócia, Ney Matogrosso com Doce Vampiro, Nenhum de Nós com Canção da Meia-Noite, João Nogueira com Boteco do Arlindo e mãe e filha em quarentena cantando El Enamorado y la Muerte.

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ROTEIRO

Bem-vindos à nossa Poranduba, o podcast sobre as histórias fantásticas do folclore brasileiro. Eu sou Andriolli Costa, o colecionador de sacis, e serei seu guia. E se você está ouvindo esse programa fora da data do seu lançamento, saiba que hoje estamos vivendo os momentos iniciais da reclusão como medida protetiva à pandemia do Covid-19, provocada pelo novo Coronavírus. E nesse período tão delicado, temos a oportunidade perfeita para falar sobre folclore e saúde.

Vamos conversar sobre medicina popular, o que diferencia práticas tradicionais de cura daquela fake news com remédio infalível que você recebeu no whatsapp, e, é claro, como folclore pode servir como resistência aos males que nos cercam. Mas, pra isso, eu preciso colocar vocês no clima. E vamos começar com essa canção que transforma em música uma das orações de proteção mais famosas do Brasil, dessa vez na voz de Rhaissa Bittar. Vamos lá?

Eu demorei um pouco para lançar esse programa porque eu precisava tomar muito cuidado com a mensagem que eu queria passar aqui. Vejam bem: seria muito fácil eu simplesmente elencar aqui uma série de práticas de cura que são, no mínimo, exóticas. Isso é muito comum no folclore, e é por isso que por muito tempo esse campo foi visto como uma coletânea de curiosidades populares. Há lugar pra isso, claro, todo mundo pode se divertir com o folclore, mas quando a gente só fala desse exotismo sem contextualizar, sem refletir, estamos incentivando aquele raciocínio corrente de que folclore é coisa de gente ignorante. Um comentário como que dizendo: “Ai, ai, só esse povo mesmo, heim?”. Então, não, não é isso que eu quero.

Por outro lado, se a gente só faz louvores ao folclore, esquecemos que há na tradição muita coisa que é importante ser repensada. Por isso eu sempre repito aqui o que aprendi com os estudos folclóricos brasileiros: folclore é sempre dinâmico, sempre transformação. Se algo não faz sentido, vai desaparecer, e quem dita essa transformação é a sociedade. Então sim, folclore pode as vezes ser sexista, racista, xenofóbico e pode, claro, transmitir crenças que ganham valor de verdade em uma comunidade que em algum momento devam ser enfrentadas. Por isso o que a gente faz é não apenas falar sobre folclore, mas pensar criticamente sobre ele. E acima de tudo, reconhecer que ele existe e é uma forma de plasmar a alma do povo.

Então primeiro a gente precisa desnaturalizar essa ideia de que o “povo”, entre aspas, faz uma coisa e nós, os ilustrados e esclarecidos, com formação universitária, não. O Mário de Andrade chama atenção pra isso logo no começo do seu artigo A Medicina dos Excretos. Oras, muita gente acha graça do animismo dos povos antigos, por exemplo, mas não tem uma pessoa que não fale que o sol nasce no Leste. Ou que uma árvore frutos. O ato de nascer ou de voluntariamente dar não é inerente a um corpo celeste ou a uma planta. Não é este também um tipo de animismo? Pois é, o pensamento metafórico é inerente ao ser humano.

Obviamente é frustrante para o pensamento científico perceber que não há muitas saídas para isso. Susan Sontag tem um livro muito interessante chamado A Doença como Metáfora que, de maneira bem evidente, demonstra a inquietude diante desse imaginário da doença que introjeta uma série de subjetividades para além de qualquer conhecimento institucionalizado.

Na obra, Susan reflete especialmente sobre as imagens que circulam na literatura e na cultura pop de duas doenças em especial: a tuberculose,  mal que marcou o final do século 19, e o câncer. Mais tarde ela expande suas reflexões também para a Aids, mas aqui vamos nos concentrar no câncer. A própria palavra, câncer, tem um peso de condenação, não é verdade? É uma enunciação tão forte que ela grita mesmo quando não é verbalizada. Qualquer pessoa, quando encontra um caroço no corpo onde não devia sofre de imediato com a angústia entre a descoberta e a consulta médica.

E quando, por fim, vem a confirmação, uma série de perguntas começam a surgir: “por que eu?”, “o que eu fiz para merecer isso?”. É a ideia da doença como penitência, como castigo. Entre os gregos, na antiguidade, esse castigo advindo de uma falta divina era compartilhado, coletivo. Você sofria com uma praga, por exemplo, por que a sua cidade ofendeu Athena; ou por que um ancestral cometeu um crime contra o próprio sangue. Mais a frente, especialmente com a cristianização do ocidente, as faltas se tornaram castigos contra ações ou omissões cometidas pelo indivíduo.

“Qualquer enfermidade tida como um mistério e temida de modo bastante incisivo será considerada moralmente, e não literalmente, contagiosa”, escreve Susan. A ideia mesmo de produzir o livro veio quando ela percebeu o julgamento das pessoas frente ao câncer: se afastando dos doentes, proibindo que as crianças os visitem, e assim por diante.

Acontece que olhando para a nossa biografia – se doentes – ou para a dos outros, encontramos motivos para justificar a doença. Há uma condição na tuberculose, por exemplo, que são os momentos em que o enfermo é tomado por energia. Hiperatividade alternada com languidez. Isso fazia com que ela fosse vista como uma doença de quem tem paixão demais. Já o câncer como de quem tem paixão de menos. O que isso quer dizer? Que era muito comum a ideia de que a pessoa desenvolvia câncer por estar reprimindo sentimentos, guardando mágoas, segredos, coisas ruins. E era isso que gerava a doença.

Encontrei um estudo brasileiro muito interessante, desenvolvido na Santa Casa de Maceió. O link está no roteiro do programa. A pesquisa entrevista 25 pacientes mastectomizadas, que fizeram a cirurgia de remoção devido ao câncer de mama, e 25 pacientes com câncer de próstata. Dela, retiro dois pontos relevantes: o primeiro é a dificuldade de falar sobre a doença. Parte das mulheres e grande parte dos homens usam eufemismos, não falam em câncer. “Eu vim tratar uma inflamaçãozinha”, “eu vim reduzir a próstata”. Isso é muito comum. Meu avô, que teve que tirar o intestino devido ao avanço do câncer, dizia que tinha operado “uma bola” que tinha na barriga. E não se enganem, ele sabia muito bem o que era câncer. Já o vi falando mais de uma vez de tumores no gado. Não é desconhecimento, é o medo que a palavra traz.

Outra coisa digna de nota é que no estudo em Maceió, as mulheres ecoam a ideia do câncer enquanto resultado de uma repressão. Os problemas conjugais, familiares, financeiros, quando não verbalizados, são traduzidos na forma da doença. Já os homens tem uma tendência a culpar as relações extraconjugais ou uma promiscuidade na juventude como motivo para o surgimento da doença.

Sontag ressalta ainda algo que faz toda a diferença no imaginário. Diziam que, no caso da tuberculose, era o interior do corpo do paciente que havia se tornado encharcado, com umidade nos pulmões, e por isso ele precisava ser drenado indo a lugares secos, como montanhas e desertos. Vocês já devem ter visto essas histórias de época de um jovem rico da capital indo para a cidadezinha da serra se tratar da doença, não é verdade? Pois bem, a tuberculose, portanto, era entendida como uma doença ligada ao ar, ao vento, a vida, então a aquilo que é superior. Já o câncer ataca partes constrangedoras do corpo: cólon, bexiga, reto, próstata, testículo. Não por acaso as imagens ligadas ao câncer são menos românticas.

Apesar deste não ser um apontamento de Sontag, uma imagem simbólica muito forte que se consolida em mito, no caso da tuberculose, é o do vampiro. Em Drácula, por exemplo, vemos que o acamamento que rapidamente toma Mina Harker, devido aos assédios noturno do vampiro, se assemelha muito com o abatimento típico dos tuberculoso. Mais do que isso, as próprias características do vampiro: tez pálida com rubor vermelho, corpo magro, aparência debilitada e ar lúgubre passaram a ser identificados com características da elite e, com ela, da beleza. A sedução contagiosa do vampiro também perpassa pelas imagens de sedução da sociedade.

E quais as imagens evocadas pelo câncer? É a decadência em escala, a corrupção do corpo. Aquilo que nos devora por dentro. A “bolha assassina” da cultura pop. Nada nem de perto tão romântico.

Por fim, vale notar que muitas vezes também falamos em “encontrar a cura do câncer” quase como sendo encontrar o Santo Graal. Bom, estritamente falando, na medicina, já é possível curar câncer – caso a caso. Mas esse desejo por uma panaceia, por algo que nos salve de vez dos horrores da doença, em qualquer uma de suas manifestações, ainda persiste. E, francamente, como poderia ser diferente?

Estabelecemos nesse primeiro bloco as relações entre imaginário da doença, imagens simbólicas, crenças e mitos que dela decorrem. Agora é o momento de investigar uma outra seara: a da relação entre folclore e desinformação num período de incertezas como o que vivemos.

Existem dois pontos principais que podemos abordar aqui. O primeiro diz respeito à crenças protetivas e práticas de cura relacionadas à cultura popular que são reatualizadas e circulam diante do medo compartilhado pela pandemia do coronavirus. Falaremos disso logo mais. O segundo é um braço argumentativo que, ao identificar folclore com um conhecimento fundamentalmente falso, vai equipará-lo às fake news que tem tanto circulado pelas redes sociais.

Essa é uma questão particularmente inquietante pois dependendo da escola de folclore que a analisa, a resposta será diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, os estudos folclóricos reconhecem uma proximidade entre mito e lenda com boato e rumor. Encontramos um exemplo bem atual disso no artigo publicado pelo Centro Smitshsoniano de tradição e herança cultural, chamado Os valores e perigos do folclore diante de uma pandemia global. E nele, o autor elenca, por exemplo, as mensagens de whatsapp incitando o povo a estocar o máximo possível para a quarentena como folclore. Ou então aquelas “fics”, como a gente chama, de “um amigo do meu pai trabalha como médico e disse tal coisa”. Bom, por certo o rumor, o disse me disse, a história contada por um amigo de um amigo meu, tem lugar e proximidade com o folclore. Mas será que dá pra classifica-la assim?

Essa mesma ligação dificilmente seria feita no Brasil. Câmara Cascudo, o grande nome dos estudos por aqui, ressaltava com frequência: tudo o que é folclórico é popular, mas nem tudo que vem do povo pode necessariamente ser considerado folclórico. Como reconhecer então o que tem e não tem essa validade, esse carimbo do folk? Bom, os estudos folclóricos no Brasil se consolida enquanto corpo em 1947, com a criação da Comissão Nacional do Folclore. As discussões desses vários pesquisadores vão ser plasmadas na Carta do Folclore Brasileiro, de 1951, em concordância com as recomendações da Unesco para a salvaguarda da cultura popular.

E em 1995 essa carta foi revista em um novo congresso da Comissão, e ela estabelece os seguintes critérios: aceitação coletiva (isto é, um grupo deve reconhecer aquilo como integrante da sua identidade); tradicionalidade (ou seja, um histórico de recorrência na transmissão desse saber entre gerações); dinamicidade (a capacidade do fato folclórico de se transformar, acomodando melhor o espaço e o tempo que compartilha com o grupo) e funcionalidade (um sentido para sua existência no seio da comunidade).

Um rumor, sabemos, é dinâmico o bastante para se alastrar, e sua função clara é a de confundir e incitar ações que dialogam com interesses alheios. Mas será que ele é suficiente para caracterizar a identidade de um grupo? Possui tempo suficiente para ser identificado como tradição? A questão aqui não é verdade ou mentira, a questão é: o folclore possui pregnância simbólica. Ele nos impregna de sentidos ancestrais. Se isso não acontece, se é passageiro, então certamente não é a mesma coisa.

Durante a pesquisa para este programa, encontrei um livro bastante curioso. Chama-se O Beijo da Morte – Contágio, contaminação e folclore, de Andrea Kitta, folclorista da Universidade do Colorado. Nesse livro ela investiga a relação entre cultura popular e as imagens do espalhamento de doenças, articulando análise narrativa de mitos e lendas com bastante referência à cultura pop. O problema é que, seguindo a linha americana, ela também incorpora na análise os boatos e rumores, o que por outro lado gera provocações e buscas por respostas valiosas. Quem pesquisa folclore e doença está sempre fazendo grandes preâmbulos para não ser mal interpretado, isso é uma constante.

O que destaco do livro dela é uma frase logo na introdução. Qual o objetivo de pesquisar o folclore sobre doenças? É reconhecer uma cura, identificar um tratamento? Não, certamente não. Mas para além de ser um registro do pensamento do seu tempo, incorporar essa “cultural awareness”, essa preocupação cultural, é importante para compreender os próprios processos que geram à fabulação sobre a doença. Ignorar a cultura, o contexto e impor ao povo um tratamento sem qualquer diálogo – sob os auspícios de estar fazendo um “bem” para ele – é insistir numa lógica da modernidade industrial que já deveria ter avançado muito para romper sua incomunicabilidade.

Exemplo claro disso é o que foi feito pelos movimentos sanitaristas no início do século XX. Todos já ouviram falar na revolta da vacina, não é verdade? E se parece ignorância ver o povo revoltado com uma campanha de saúde preventiva, há de se lembrar que isso em nada se parece com os antivaxers de hoje. Na época não havia nem informação e nem qualquer esforço de dialogar e explicar o motivo para a ação. Ninguém quer ver o Estado invadir sua casa e obrigar a fazer algo sem que você saiba o porquê.

A mesma falta de comunicação ajudou a alimentar outro mito bastante conhecido no Brasil. Eu já contei num episódio de Popularium, o podcast que fiz com o Mundo Freak, sobre como a comissão rockfeller, quando veio ao nordeste do País, percebeu que havia muito diagnóstico errado de febre amarela com malária. A partir de 1928, decidiu então treiná-los para que retirassem, com bisturi e tesoura, fragmentos do fígado de pessoas falecidas de modo suspeito.

“Dizia-se que o encarregado de usar o viscerótomo nos cadáveres era um homem bem pago para fornecer pedaços de fígado aos doentes de leprosários vizinhos”, lembra Cascudo. “Uma onda de protesto se levantou e nunca a viscerotomia pôde ser feita como se desejava”. O medo do Papa Figo articulava o imaginário sobre a doença.

À incomunicabilidade muitas vezes se liga também o medo, que convida à fabulação. Sabe o que vivemos hoje com falta de leitos em hospitais para os tantos casos em observação? Imagine na época da Gripe Espanhola, em 1918! As pessoas morriam rapidamente, mas um leito vazio logo era ocupado por um outro doente. Foi assim que começou a se espalhar uma história que se tornou tão famosa que meu avô a vivia repetindo sempre que precisava ir ao médico: a do chá da meia noite. Dizia-se que, para liberar os leitos, as enfermeiras das santas casas iam à meia noite até os mais velhos e lhes ofereciam um chá – que na verdade era puro veneno. No dia seguinte, o corpo já não estava mais lá. Com o passar dos anos, o imaginário transformou o chá em uma injeção mortal que também servia para os mesmos propósitos.

A história ganhou tal proporção que logo em 1919, com o fim da gripe, ela foi celebrada em bocós de carnaval, com marchinhas que cantavam que queriam dar um chazinho para a sogra ou brincadeiras de duplo sentido com o que se daria para tomar às escondidas no meio da noite. Digamos que a marchinha era o meme da época.

O contágio, no folclore, está muitas vezes ligado ao ataque de uma criatura sobrenatural. Uma mordida ou contato com sangue de um lobisomem, por exemplo, pode adoecer uma pessoa. Mas há também aquele contágio que não se dá no aspecto físico. No livro que mencionei anteriormente, Andrea Kitta lembra de um caso muito marcante nos Estados Unidos: o mito do Slenderman. Sabemos sim que a criatura foi criada em fóruns da internet e os seus criadores sabem que produzem ficção. No entanto, o que aconteceu, explica ela, é que o lastro ficcional se perdia quando pessoas tomavam contato com as histórias sem saber sua origem.

Nessa “hiperstição”, como aprendi essa semana, o ficcional rompe barreiras e se torna crença. Assim, muita gente afirma já ter sido assombrada pelo Slenderman em sonhos e, desse contato, surge uma doença: the Slender Sickness ou, simplesmente, the sickness. Os sintomas são dos mais variados, dependendo de quantas vezes a pessoa teria visto a criatura: vão de sangramento nasal e vômito a paranoia e alucinação. Qual a origem dessa doença? Bom, esse é um mito muito complexo, que se relaciona fortemente com cyberbullying, então é difícil dizer sem uma reflexão mais completa, mas ela diz muito das nossas respostas físicas e psicológicas ao que faz esse outro misterioso, anônimo e sem rosto que nos assedia.

Por fim, vale mencionar essa imagem simbólica que dá nome ao livro da Andrea, o Beijo da Morte. É algo recorrente em vários mitos, contos de fada e que, por consequência, vai se espalhar entre a cultura pop. É o símbolo do “estranho próximo”, alguém que você não conhece direito, mas com quem se partilha essa intimidade que é o beijar. E esse beijo, vale lembrar, pode ou não ter a ver com sexo, mas sempre traz consequências. Podemos pensar, por exemplo, na ancestralidade do beijo de Judas, até histórias muito contemporâneas que com certeza vocês já ouviram por aí. Como a da mulher que vai ao médico reclamando de dores e descobre (na boca ou na vagina) um verme que só dá em cadáveres. Da investigação, descobrem que o homem com quem ela estava saindo trabalhava no necrotério, e violava os corpos que ali chegavam.

Um clássico nas histórias populares são os beijos para selar acordo com o demônio. Na troca, a pessoa recebe aquilo que deseja por determinado tempo, e após isso adoece e morre, tendo sua alma levada para o inferno. Muita gente deve reconhecer isso na série de TV Supernatural, nos pactos com os demônios das encruzilhadas. Mas a bem da verdade, os pactos mesmo não eram tratados com beijos na boca, mas no ânus. É o chamado Osculum Infame, o Beijo Vergonhoso. Cascudo registra isso também no folclore brasileiro, e escreve que na encruzilhada “encontram o diabo-mor, com forma de bode, boi, sapo ou rã. Permite que beijem o traseiro, concede-lhes a realização do desejo por determinado tempo e ordena-lhes que venham uma vez por ano à assembleia geral”. Mas alerta: não adianta pedir dinheiro.

O beijo no ânus é uma constante nas histórias de bruxas, tendo sido colhido em vários dos depoimentos das mulheres durante a Inquisição – claro, frequentemente tomados durante tortura. Ainda assim, a prática se cravou nos relatos sobre magia que chegaram em nós até hoje. Pensando novamente nas adaptações do pacto para séries, acho que não ia ficar tão estética a cena na televisão.

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Vocês provavelmente já ouviram muita gente fazendo relações entre o que estamos vivendo hoje e o que o Brasil passou durante a epidemia da gripe espanhola, em 1918. No mundo todo, foram 75 milhões de mortos por essa doença que, de espanhola, só tem o nome. No Rio de Janeiro, então capital do Brasil, foram cerca de 13 mil mortos. Percebemos uma série de paralelos entre a situação passada e o que vivemos hoje: demora de ação por parte das autoridades, quarentenas rompidas por crença de que a fé em Deus era mais forte que o vírus e assim por diante. Mas o que quero atentar aqui é para as respostas oferecidas na época pelo folclore e pela cultura popular. Vejam só:

Christiane Maria Cruz de Souza num artigo sobre a Gripe Espanhola na Bahia de Todos os Santos, recupera uma matéria escrita por um repórterdo jornal O Imparcial que resolveu expor as absurdas proteções que, abre aspas, “feiticeiros e charlatães”, ofereciam ao povo. Para isso, visitou casas de benzedores e terreiros de candomblé para, sem se identificar, pedir a ajuda dos curadores. Pai Nicácio, um dos consultados, preparou um ritual de proteção e colocou uma “torcida de algodão no pescoço do repórter”, com a recomendação de que devia ser usada por sete dias e depois lançada na maré de vazante. Depois, Pai Nicácio pronunciou as palavras sagradas do ritual e prescreveu um procedimento para “fechar o corpo” contra todos os malefício.

Depois, o jornalista foi à casa da curandeira Dona Gertrudes, que também lhe recomendou a mesma torcida de algodão ao pescoço, indicada antes por Pai Nicácio, entregando-lhe, em seguida, um feixe de ervas para fazer um lambedor e o gargarejo. O que é este algodão tão indicado? Num artigo sobre os amuletos de crianças proletárias no ceará, encontramos a resposta. Um cordão de algodão torcido em dias específicos ganhava a capacidade mágica de evitar vômitos. A suspeita é de que o amuleto seja de origem indígena. Já as ervas, como a pesquisadora investiga, possuíam realmente propriedades terapêuticas que contribuíam para aliviar os sintomas da doença: diurético, depurativo, anti-inflamatório, expectorante, antitussígeno, etc.

Curiosidade: Outro tratamento, dessa vez conhecido em São Paulo, também buscava tonificar e aliviar os sintomas da gripe espanhola, com um preparado de mel, alho e limão, com uma dose de cachaça para acelerar os efeitos do medicamento. Jairo Martins no livro Cachaça, o mais brasileiro dos prazeres, atesta que mel e o alho saíram de cena e o povo resolveu acrescentar gelo e açúcar. Assim surge a famosa Caipirinha, o mais famoso dos drinks brasileiros. O estrelato internacional da bebida, dizem, chegou logo na década de 1920, quando Tarsila do Amaral a servia para seus convidados no seu ateliê em Paris.

Retornando à Bahia, o repórter do Imparcial conclui a matéria ridicularizando as práticas tradicionais de cura como sendo absurdas, mas hoje, diante um olhar distanciado, podemos ver a coisa por um prisma diferente: havia ali uma cura simbólica, na forma de amuleto, e outra física, na forma da medicina popular. Não curava a gripe espanhola, por certo, mas agia em seus sintomas. Agora, o que a medicina tradicional oferecia na época?

Nos jornais, opiniões médicas traziam todo tipo de tratamento. No começo da pandemia, tratada com desprezo, canja para restaurar os enfermos foi a grande recomendação. Depois, no Diário de Pernambuco, encontramos que para evitar a gripe era preciso beber água com enxofre sempre que se chegar em casa, num preparado com álcool, limão, erva doce e tintura de briônia. Em caso de contágio, purgante de água vienense e lavagens intestinais.

Com o avanço da pandemia, sulfato de quinino, remédio usado no tratamento da malária e muito popular na época, passou a ser distribuído à população, mesmo sem qualquer comprovação científica de sua eficiência contra o vírus da gripe. Parece familiar? Pois é. Em resumo, caldo de galinha, limão e quinino  foram as grandes terapêuticas da época contra a gripe.

Christiane Souza registra que os médicos prescreviam remédios como aspirina para a dor e hipertermia, tonificantes para restaurar a força e purgantes para as complicações gastrointestinais. Em resumo: tratavam de aliviar os sintomas, da mesma maneira que os lambedores, chás e ervas da medicina popular.

Isso é algo a não se perder de vista. Durante séculos, aquele que consultava os tomos de medicina estudados pelos eruditos iriam encontrar práticas tão espantosas que levaram Gilberto Freyre à única constatação possível: nada autorizava a concluir que as comadres e curandeiros excedessem a medicina oficial europeia nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Como vimos, esse tensionamento pode ir ainda mais longe.

Freyre também se questionava quanto a origem das práticas de cura. Ficava difícil saber se eles vinham do povo e depois eram testados e apropriados pelos médicos ou se vinham do saber médico erudito e era laicizado para o povo. Certamente era uma via de mão dupla, mas é interessante observar esta última opção. Acontece que muito dessas práticas de cura que encontramos na medicina popular tem registro em livros que se popularizaram por aqui. Um deles é a Âncora Medicinal, de 1721, escrito por doutor Mirandela, o médico do imperador Dom João V. A Ancora trazia muito da oralidade para ser disseminada entre o público, então é de se entender o motivo do seu espalhamento.

Outro foi o Lunário Perpétuo, almanaque escrito por Jerónimo Cortés e publicado em Valência no século XV, mas editado em Português no XVII. Luiz Antônio Simas conta que o Lunário por 200 anos foi uma fonte de sabedoria no sertão brasileiro. Nele encontramos receitas fabulosas. Está com sono em demasia? Talvez a solução esteja em inalar fumaça da queima de sola de sapato, unhas de jumento ou cabelos humanos. O problema é insônia? Um emplastro de semente de dormideira com leite de mulher, disposto na testa, pode ser o seu santo remédio.

Não é por acaso, então, que muito da medicina popular no Brasil incorpore o uso de excremento de vários animais, sangue e urina – especialmente de criança. No seu estudo sobre a medicina dos excretos, Mário de Andrade faz um divertido, mas nunca desrespeitoso, levantamento dessas práticas no Brasil. São coisas que vão de esfarinhar estrume para estancar o sangue até um emplastro de bosta de vaca em folhas de repolho para passar a dor no ciático. Há ainda uma tradição longuíssima de colocar o dedo no ânus de algum animal para receber a cura: por aqui, no catimbó, se dizia que botar o dedo doente de unheiro no traseiro de um galo ou de uma galinha choca traria a cura. Na França, dedo no de uma toupeira podia curar dor de dente.

Outra curiosa prática relatada por Mário de Andrade está na cura do terçol – ou três sol, como as vezes é conhecida pelo povo. Segura-se um gato pequeno (se o doente for mulher, e gata se for homem) e esfrega-se o ânus do animal sobre o terçol. Há quem afirme que é o remédio mais eficaz de todos, porque o doente fica vacinado pela vida toda. Outras opções colhidas por ele estão o colírio feito de urina de criança, de preferência menino, ou urina do próprio doente.

Isso para não falar no frequente uso da banha. No medievo, “´óleo humano” era recomendado contra calvice e consistia na gordura de homens que morreram violentamente. Por aqui, nada tão extremo. É muito comum o uso da banha de sucuri para reumatismo, por exemplo, ou no norte que se usa banha de mucura para tratar uma série de coisas, inclusive dor de garganta. Gordura de peixe também volta e meia é mencionada. Parece absurdo, mas quando pensamos o que é o Ômega 3, tão em alta ainda hoje, vemos que não é uma relação despropositada.

Pode parecer não haver motivo para essas práticas para nós tão distantes e mesmo nojentas, mas Mário de Andrade explica: é tudo uma questão simbólica. “As terras gastas revivem com a estrumação. Se os excretos são dadores de vida a terras doentes, serão dadores de via a homens doentes também”. Sempre há sentido, nós é que nem sempre o captamos.


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Por fim, eu quero encerrar esse programa com alguns breves exemplos de como o folclore tem sido usado para resistir aos tempos de quarentena. Saúde também é isso, e a cultura popular pode assim muito bem servir de cura.

No Japão, por exemplo, ilustradores de todo o país estão enchendo as redes sociais com desenhos de uma sereia de três pernas com cabelos compridos e bico. Trata-se do yokai Amabie, registrado já no século XIX. A narrativa fala que a criatura emergiu do mar trazendo profecias sobre as futuras colheitas e doenças. E aconselhava: em caso de epidemia, o povo devia desenhar a criatura e compartilhar com todos que estivessem doentes. Diante da expansão do corona, uma ação de carinho e memória para quem compartilha daquela cultura.

No estado de Vermont, nos Estados Unidos, encontramos uma proposta diferente feita pelo Vermont Folklife Center, o “listening in place”. Algo como “escuta no lar”. Já que estamos confinados, por que não aproveitar esse momento para conversar e gravar com as pessoas com quem dividimos o lar? A ideia é construir um arquivo sonoro da quarentena, onde os moradores da região possam mandar áudios que mostrem um panorama desse período. Todo dia eles postam ideias novas que podem engajar uma conversa a ser gravada – para o caso de você não estar tão inspirado. Aproveito essa ideia para deixar uma sugestão: converse com seus pais e avós. A vida vai passando e tem coisas que a gente nunca pergunta. Qual o nome da cidade que ele nasceu mesmo? Como era mesmo aquela história que ela sempre contava? E, claro, já ouviu alguma de saci? Aproveita, a gente nunca sabe o dia de amanhã.

Outro exemplo muito especial foi a proposta de um grupo de folcloristas e músicos de Castela e Leão, na Espanha, que se reuniram on-line para tornar a crise ao menos mais suportável. Capitaneados pelo contador de histórias José Luis Gutiérrez ‘Guti’, músicos tradicionais que tiveram suas apresentações canceladas criaram um grupo no Facebook para compartilhar “cantos de ronda”, uma manifestação folclórica típica da região. Foi esse primeiro ato que batizou a campanha. ‘#Rondadores contra el virus surgiu no dia 14 de março, o primeiro do confinamento preventivo para o novo coronavirus. Hoje, são quase 7 mil membros e 2 mil vídeos publicados com a hashtag.

As redes se encheram de cantos de trabalho e músicas tradicionais de todos os tipos, unindo as famílias com algo que lhes é muito anterior. Na descrição do grupo, uma fala inspiradora. “Vamos cantar como cantavam os velhos com quem aprendemos; canto singelo que durante séculos serviu para atravessar tantas calamidades, guerras e enfermidades, que segue sendo a melhor maneira de vencer o medo e a pena”.

“Um povo que canta para seus filhos é um povo que sobrevive”, assegura Guti, o organizador.

O folclore vive, e nós também.

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