A Culpa de Lobato? Folclore brasileiro e infantilização

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Arte de Fábio Shin

Por Andriolli Costa

O Colecionador de Sacis tem pouco mais de um ano de idade, mas meu interesse em folclore como pesquisa começou ainda em 2008 – estudando a obra infantil de Monteiro Lobato. Desde essa época, sempre gostei de acompanhar de perto as discussões envolvendo folclore nas redes sociais, não para criticar ou apontar o dedo e sim para compreender. Ninguém é obrigado a ter feito as mesmas leituras que eu, muito menos a chegar às mesmas conclusões. No entanto, ignorância se responde com informação; e para bem informar é preciso conhecer.

O que se fala de folclore?

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Os dois polos extremos das discussões sobre folclore brasileiro são fáceis de identificar: os que o defendem, de maneira quase ufanista, e os que o detestam com todas as forças. Entre os primeiros – raridade, eu diria – existem aqueles que usam os mitos como resposta ao imperialismo cultural. Normalmente alinhados também a outras pautas, como o combate ao estrangeirismo e o antiamericanismo. Para isso, buscam as raízes e as tradições. Algo que por vezes pode levar a um conservadorismo anacrônico preocupante.

Já no segundo caso, encontramos pessoas que, muitas vezes estão descontentes com o próprio Brasil, e buscam em outras culturas a identificação que não encontram (ou tentam não encontrar) por aqui. É o famoso caso do complexo de vira-latas que Nelson Rodrigues apontou. Como um Narciso às avessas, quem sofre deste mal cospe na própria imagem, e dificilmente se abre para pensar além do seu próprio preconceito. Lembro que na 6º série um amigo “metaleiro” quase chorou na sala por não querer ouvir música caipira para fazer uma interpretação de texto. Pois é…

Entre essas duas pontas, é claro, existe uma infinidade de visões que aparecem vez ou outra nas discussões. Um movimento focado na cultura pop e na revisão de antigas mitologias para propor imagens mais adultas e modernizadas. O argumento que sustentam, entretanto, é por vezes preocupante. “Nossos mitos são legais. Essa imagem infantil que temos hoje é tudo culpa de Lobato”. Ou, nas palavras de um usuário do Facebook:

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Injustiças
Qual, afinal, foi a culpa de Lobato? Ter feito sucesso? Os 95 anos que hoje nos separam da primeira publicação dos livros do Sítio do Picapau Amarelo fazem com que a obra pareça distante demais, perdida entre adaptações televisivas e polêmicas envolvendo o racismo manifesto do autor. A verdade é que, se hoje podemos sequer pensar em folclore como temática para as artes-visuais, quadrinhos ou videogames, devemos muito a um lastro iniciado pelo autor ainda no início do século XX. Somos todos, de uma forma ou de outra, filhos de Lobato. Lembrar os motivos para isso é meu objetivo neste artigo.

Antes de Monteiro Lobato, Folclore brasileiro era um tema totalmente avesso ao universo das artes e da literatura. Era coisa de caipira, muito alheia ao estilo europeu que se buscava imitar por aqui. Para ter ideia de sua importância, precisamos voltar alguns anos antes da própria publicação do Picapau Amarelo.

Em 1917, frustrado por se deparar com esculturas de gnomos “nibelungos” nos parques de São Paulo – encapotados e prontos para o frio germânico debaixo de um belo sol tupiniquim – Lobato convidou diversos artistas nacionais num chamado 7 de setembro artístico. Todos deveriam produzir obras inspiradas na figura do Saci Pererê, o duende nacional.

Nem todo mundo topou, mas muitos aceitaram o desafio. A Exposição do Saci, que resultou do chamado, foi possivelmente, “a primeira vez na terra natal do Saci, que o Saci foi guindado às regras da arte”, escreveu o próprio Lobato. Das maravilhosas obras apresentadas, a vencedora foi a tela “O Saci e a Cavalhada”, de Roberto Cippichia.

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O inquérito
Também em 1917, Lobato escreve para a edição vespertina do jornal O Estado de S. Paulo o artigo Mitologia Brasílica. Nele, promove uma nova campanha e convida todos os leitores a compartilharem suas histórias sobre o duende brasileiro. Por que o saci? A ideia era de que a criatura reunia a trindade formadora da cultura brasileira: o índio (pois surge como duende Guarani, Yasy Yateré), o negro e o branco europeu, de quem herda o barrete veremelho. Os leitores, portanto, deveriam responder ao seguinte questionário:

  • Sobre a sua concepção pessoal do Saci; como a recebeu na sua infância; de quem a recebeu; que papel representou tal crendice na sua vida, etc.;
  • Qual a forma atual da crendice na zona em que reside;
  • Que histórias e casos interessantes, passados ou ouvidos sabe a respeito do Saci.

sacy_perere_inqueritoO resultado foi publicado no livro O Sacy Pererê: Resultado de um Inquérito (1918), assinado por “um demonólogo amador”. Nele, estão presentes inúmeras histórias, das narrativas populares às elaborações literárias, com descrições diferentes da criatura, mostrando como o mesmo mito pode ser construído de maneira diferente no imaginário de cada comunidade.

Os sacis descritos no livro são dos mais variados. Há diabretes com cascos, com garras, chifres e rabo. A imagem do Saci utilizada por Lobato para ilustrar a capa da publicação, por exemplo, mostra um Saci com dentes pontiagudos, chifres córneos e um porrete a mão, com o qual castigava os transeuntes. Isso mostra que saci, para Lobato, não era coisa de criança. Era coisa de brasileiro.

O Sítio
sitio_ominotauroNo Sítio do Picapau Amarelo, o Saci se mostra bem menos demoníaco, mas também possui características peculiares. Na obra infantil, ele tem costume de chupar sangue dos cavalos, possui uma coruja como escrava, foge da cruz e adora o número sete. São apenas algumas das várias características levantadas por Lobato durante o Inquérito. Obviamente ele fez algumas escolhas, mas nenhuma delas foi tirada do bolso. A referência, em última instância, é o povo. E isso é fundamental.

Veja bem, eu adoro Câmara Cascudo, adoro Silvio Romero e os grandes folcloristas. Mas Cascudo é uma fonte de segunda mão quando se fala em folclore, pois a autoridade máxima é o povo. Poder ouvir e compreender o folclore vivo, dinâmico e atuante é mais importante que qualquer dicionário. Lobato fez isso.

Um dos momentos mais emocionantes ao estudar Lobato, para mim, foi lendo suas cartas nos dois tomos de A Barca de Gleyre. Já no fim da vida, debilitado por suas duas prisões no governo Vargas e infeliz com a morte de seus filhos, o escritor recebe a mensagem de uma fã, então adulta, que cresceu lendo seus livros. Uma filha de Lobato. A moça, após uma linda mensagem declarando a importância que o Sítio teve em sua vida, arremata:

“Se alguém me perguntasse qual a oitava maravilha do mundo, eu diria: a Emília, ou o seu criador, ou o Sítio do Picapau Amarelo, pois tudo se confunde.

Você já pensou por que o Sítio é a oitava maravilha do mundo? Pense em um espaço mágico, num universo fantástico unificado onde Lobato fez conviver lado a lado com as crianças e os bichos da roça sacis, cucas, mantícoras, minotauros, dragões e piratas. Personagens do folclore, da mitologia grega, do cinema, das fábulas e dos desenhos animados existiam em pé de igualdade nos poucos hectares que formavam as terras de Dona Benta.

Se você já sonhou em ir para Hogwarts, gerações de brasileiros sonharam em ir para o Sítio. Detalhe: alguns até conseguiram! Lobato incluiu leitores como personagens em vários de seus livros.

Para superar o pai

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As páginas do livro do saci estão sempre em branco, pois você pode criar infinitamente. (Arte de Luiz Telles)

Como repeti bastante neste texto, somos todos filhos de Lobato e devemos muito a ele pela campanha de valorização do folclore brasileiro, que graças a ele – e aos seus sucessores – fincaram de vez o pé no imaginário coletivo nacional. Nem todo mundo já ouviu histórias de saci, mas certamente a figura icônica do negrinho de uma perna só está em sua cabeça. Mas se é uma ingenuidade e uma injustiça dizer que Lobato é culpado pela infantilização de nosso folclore, uma coisa é certa: agora é preciso ir além.

Devemos aprender com Lobato. Não ir a ele, mas ao povo. Compreender o que é nosso folclore contemporâneo, o que ele diz sobre nós e daí tirar novas histórias, novas interpretações. Produzir filmes, quadrinhos, livros que não usam nossa cultura apenas como um template estético, mas que bebam da fonte e falem sobre nossas formas de agir e estar no mundo. Assumir que mitos e lendas não são apenas palavras, mas imagens e metáforas que, em suas raízes, descrevem não seres de outro mundo, mas a nós mesmos.

Com isso, podemos brincar com o folclore. Recriá-lo, reimaginá-lo, re-inventá-lo. Usá-lo em filmes de ação, contos de terror, dramas psicológicos. É nosso papel mostrar que nosso folclore é maravilhoso e pode render qualquer tipo de história. Não apesar de Lobato, mas graças a ele.

14 Respostas para “A Culpa de Lobato? Folclore brasileiro e infantilização

  1. TOTAL FALTA DE RESPEITO COM MONTEIRO LOBATO, QUE SEMPRE ODIOU A EXTRANGEIRIZAÇÃO. AGORA SE VEM COM UM JOGO DE MORTAL COMBATE, ONDE PERSONAGENS DO NOSSO FOLCLORE SÃO TIDOS COMO CRIATURAS DE LUTA, COM ARMAS NO ESTILO “FIGHTER”, PARTICIPANDO DE UM ESTILO POKEMON PARA CRESCER.. MISTURA DE JOGOS EXTRANGEIROS….. PARECE QUE O FOLCLORE GENUINAMENTE BRASILEIRO NÃO TEM GRAÇA E A ÚNICA COISA QUE DEU CERTO FOI O LONGIQUO “SITIO DO PICA PAU AMARELO” QUE PASSAVA NA GLOBO… SE E PARA FAZER USANDO NOSSA CULTURA, “TENTE” FAZER ALGO REALMENTE BRASILIERO, COMO O TERROR TRASH DE RODRIGO ARAGAO QUE FEZ UM FILME TOTALMENTE “BRASUCA” E QUE TEVE ALGUM MÉRITO.

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    • Sérgio, quer gênero mais consagrado nos EUA do que o terror? E outra, Lobato era contra estrangeirismos ou a favor da valorização do Nacional? Há ai uma grande diferença. Se você ler suas cartas vai ver que ele admirava os Estados Unidos e especialmente Adam Smith, pensando como empresário em adaptar seu modelo industrial para cá. Além de escrever para crianças ele também traduziu muita coisa. Mogli, Peter Pan, e vários clássicos estrangeiros chegaram ao Brasil por iniciativa sua. Ele também não se furtou de acrescentar no Picapau Amarelo personagens como o cowboy Tom Sawyer e o Gato Felix. Não existe fronteira para a fantasia em Lobato 😉

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  2. Sempre seremos “macacos” dos EUA, da lingua inglesa. Tudo que é em inglês é mais bonito, empresas tem nome em inglês para serem mais atrativas ao mercado, mas eu acho muito legal quando fazem histórias ou jogos genuinamente brasucas….. Agora o que essa empresa ta fazendo é usando o folclore e “estrangerizando” , “eles mesmos usam o termo mitologia, em vez de folclore, isso ja é uma discriminação com o nosso folclore”, tudo isso para ficar mais “bonito” e atrativo para o povo que consome produtos genuinamente “Made in EUA”

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  3. Infantilização?

    “O Saci” é uma das obras que até hoje mais me deu medo, quando li aos 12 anos, mais do que Horror em Amytiville que li na época.

    O lobisomem descrito por ele é mais horrível do que qualquer outra “interpretação adulta” que vi por aí – ele é descrito como uma mistura de pelos e carne viva, possuidor de uma violência brutal e assassina da qual ninguém sobrevive ao ter contato.

    A Mula-sem-cabeça é descrita como um monstro fruto de necrofagia. É dito, nessas mesmas palavras em um livro infantil, que é uma maldição lançada em uma mulher que cavava túmulo com suas unhas e devorava cadáveres de crianças.

    As pessoas só assistiram as adaptações do Sítio para a tv, estas sim infantis, as quais nada é responsabilidade do Monteiro Lobato. Duvido que qualquer pessoa que diz que a obra é infantil sequer leu ao menos um livro.

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  4. Gosto de registrar:
    Procurei no google por “folclore brasileiro infantilização” e me deparei com seu artigo. Só agora, já adulto, tenho me interessado mais pelo folclore do nosso país e to começando minha saga nas redes sociais. Minha perspectiva, nesses espaços mais opinativos que informativos, era de como as pesquisas na internet facilmente nos levam a uma estética infantil das nossas lendas, confesso que sem fazer associação direta ao Monteiro Lobato (talvez por pura falta de conhecimento e atenção, pois um resgate rápido da minha infância, no que tange o folclore, o que primeiro vem à mente é o Sítio). E, por mais que meu incômodo não tivesse raiz em uma crítica ao trabalho do Monteiro Lobato, que só conheço pela TV, inclusive, ele girava em torno desse olhar de que “muito se perde com a ‘infantilização'”. Mas saí atento do seu artigo, pois adoro ser convencido a ampliar o olhar, principalmente quando você esclarece o caráter vivo do folclore e de sua origem no povo e em nossas diversas interpretações, além do reconhecimento do Lobato como importante ator na preservação e disseminação, por assim dizer, do nosso folclore.
    Enfim, terminei seu artigo já procurando pelo “O Sacy-Pererê: o resultado de um inquérito” para a leitura e revendo os argumentos sobre o incômodo com a tal “infantilização”, além de curioso pelos nomes Câmara Cascudo e Silvio Romero e pelo que mais vou encontrar pelo seu site.
    Ótimo trabalho, Andriolli.

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  5. Ótimo artigo. Acho que você foi bem conclusivo no artigo, não têm o que poderia acrescentar. Só queria dizer que essa “infantilização” (que é uma cotação negativa por aqui), se deve ao fato que não termos muitas produções usando nossos encantados na mídia. E o desconhecimento das nossas lendas na internet, ninguém passou essas estórias numa Wikipedia por exemplo, só as mais infantis, mais isso é assunto para outros artigos. Bem é isso, ótimo site (e ouvi o Popularium, excelente trabalho).

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  8. Acho que as pessoas que não foram introduzidas ao folclore quando pequenas tem uma grande tendência a desenvolver esse desprezo e repulsa. Eu quando criança não via nada de bobo ou infantil com o Caipora, tinha um medo mortal de ficar sozinho no mato, medo compartilhado com meus amigos de infância que contavam histórias, alguns choravam de medo kkk. E olha que eu tenho apenas 20 anos, em pleno 2007 eu era uma criança que não saia sozinha para brincar e voltava cedo para casa com medo do Caipora! O folclore ainda respira está vivo! 💪

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