E os 90 anos do Inquérito? #Saci100

Texto da Revista Saci Pererê – 100 anos do Inquérito. Clique aqui para ler e baixar.

Por Andriolli Costa

A primeira vez que ouvi falar no trabalho de Carlos Carvalho Cavalheiro foi em 2007. Eu havia acabado de iniciar minha pesquisa sobre cultura popular, com foco no Sítio do Picapau Amarelo quando descobri que alguém tentara refazer o histórico Inquérito sobre o Saci, de Monteiro Lobato para celebrar os 90 anos da pesquisa. Hoje, no centenário do Inquérito, pudemos finalmente conversar. “Eu já escrevi certa vez que o mundo é redondo para que os homens não se escondam nos cantos”, brinca ele.

O Inquérito de Carlos nunca foi oficialmente encerrado. Aberto em 2006 para as celebrações do ano seguinte, continuou recebendo colaborações em fluxo contínuo até agora. Em uma década foram cerca de 40 depoimentos, entre textos, artigos, ilustrações, poesias e letras de música. Tal qual o trabalho lobatiano. O plano era transformar tudo em livro para aproveitar a data, algo que acabou não acontecendo.

Ocorre que hoje o número é respeitável, mas a resposta foi demorada. A divulgação foi uma dificuldade: feita basicamente por e-mail, sem a ajuda da grande mídia – como em 1917, ou das redes sociais como foi possível agora. “Se houvesse mais adesão na época, quem sabe tivéssemos estímulo para fazer o livro”, lamenta Carlos. Até 2012 ele ainda enviava e-mails pedindo histórias, mas os compromissos profissionais e o próprio nascimento do filho fizeram a coleta ficar de lado.

Ainda há planos de utilizar o material, no entanto, que conta com riquíssimos depoimentos. Tanto que Carlos tem dificuldade para selecionar os favoritos. Textos dos gabaritados Luis Galdino e Olívio Jekupé estão na lista, é claro, mas há aqueles que foram grande surpresa. “Um saciólogo escreveu um estudo filogenético sobre a predominância dos sacis de perna esquerda sobre os de perna direita”, diverte-se.

Uma das críticas feitas ao trabalho de Lobato é a predominância de relatos da elite. Afinal, quem responde ao chamamento do autor são homens letrados, assinantes do Estado de S. Paulo. Em verdade, o recorte tecnológico é uma deficiência que também temos hoje. Afinal, nem todos possuem acesso ou disposição para traduzir um causo da oralidade para o texto escrito, e enviar o resultado para outrem – seja por correio físico ou eletrônico.

“Infelizmente qualquer pesquisa sempre será uma interpretação acadêmica sobre uma narrativa popular. É uma contingência do formato, que não tira sua validade”, reflete Carlos. “É sempre uma parcela da população que se expressa”.

Carlos, que é historiador, com formação em pedagogia e teologia, explica que a linguagem simbólica do mito toca os seres humanos de maneiras que o indivíduo não consegue explicar pela razão. “Até porque o mito não se entende pela racionalidade”. Foi essa potência que sempre o tocou e encantou, e Carlos faz questão de transmitir o encantamento adiante.

“Certa vez recebi uma garrafa que supostamente continha um saci. Levei para a escola onde dou aula em Sorocaba, deixei na coordenação e avisei do conteúdo”, relembra ele. “A coordenadora debochou, chacoalhou a garrafa e disse que dentro não havia nada. Pois não deu muito tempo e a umidade da garrafa começou a evaporar. Ela foi correndo me entregar a garrafa por que tinha visto um saci lá dentro”. O perneta apareceu por que foi desafiado, conclui.

saci01Aproveito a formação em Teologia de Carlos para questionar sobre a relação entre saci e religiosidade. Afinal, para muitos ele é o próprio demônio, ou ainda um diabinho que escabou do inferno enquanto o diabo fazia um forró. Ao mesmo tempo, em Serra Negra, a igreja de São Benedito traz sacis com asas de anjo em seus murais, junto aos demais santos católicos.

“As bases que fundaram nossa cultura sempre foram baseadas em muito sincretismo e muito preconceito”, reflete. “Tudo que é desconhecido tentamos interpretar conforme nossa cultura. Assim os católicos vão entender o saci como demônio, pela própria relação dele com as religiões de matriz africana que foram demonizadas”.

Isso vale também para diferentes sistemas de crença. “Aqueles que acreditam em alienígenas vão entender aparições do saci como contatos extraterrestres, como faz Antônio Faleiros. Quem pratica o espiritismo vai ver o saci como um espírito zombeteiro. Roselis Von Saff, da Ordem do Graal na Terra via ele como ser da natureza, aparentado dos gnomos e duendes”.

Espírito, demônio, força da natureza. O que é o perneta, afinal? A melhor resposta até agora é que o saci apenas é, e isso é o bastante.

Deixe um comentário