[#Saci100] Lucas Baldo Fraga – Alergia à Ventania

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Texto da Revista Saci Pererê – 100 anos do Inquérito. Clique aqui para ler e baixar.

Por Lucas Baldo Fraga

Meados de 2003. Na época eu, com 13 anos, já esboçava a curiosidade por ouvir e, também, por escrever histórias. Morador de Rio das Pedras, uma cidade com pouco mais de 29 mil habitantes, no interior de São Paulo, muito frequentei círculos de amizades com pessoas mais velhas acompanhado de meu tio, fiel passarinheiro e pescador.

Em uma manhã de domingo, como já vinha sendo costume para nós, meu tio e eu fomos até a casa de um de seus amigos. Lá, uma turma da terceira idade se reunia na calçada. Bebiam pinga com limão e jogavam conversa fora ao som de Belmonte & Amaraí.

Entre eles estava Badú. Era um senhor de mais ou menos 60 anos, cabelos brancos – porém, somente na parte de trás e nas laterais da cabeça. Ostentava grandes costeletas (no melhor estilo Erasmo Carlos) e pesadas sobrancelhas. Narigudão, cara vermelha – mais vermelha ainda por conta do efeito da pinga -, e fumava um cigarro atrás do outro. Era sério, difícil fazer piadinhas. Dentre todos ali, era o qual mais me passava seriedade. E foi da boca de Badú que ouvi um causo sobre o Saci que até hoje é o que mais me intriga.

A prosa do momento era sobre pescaria. Falavam que em tal local estaria “pegando bem”. Dicas de isca daqui, sugestões de como chegar dali… e assim o papo corria. E correu até o assunto sobre pescaria de bagres (já que o tempo andou chuvoso durante a semana e era propício a esse tipo de pesca). No vácuo do assunto, um dos senhores ali presente, de pronta batida, sugere:

– “Pá bagre deve tá bão lá na cascatinha do Monte Belo”.

Monte Belo fica na área rural da cidade. Um composto de lagos e mata. De encanto ímpar, o local citado trata-se de uma pequena cascata que recebe água de um lago bem próximo. Explicando de uma forma simples, seria: Uma estrada de terra. De um lado, o lago com uma margem exposta e rodeado por árvores. Do outro, a cascata com um pequeno lago – de aproximadamente 4 metros de diâmetro -, cercada por um bambuzal denso.

Porém, antes de qualquer palavra entusiasmada ser entoada por alguém – querendo marcar uma pescaria ali, por exemplo -, Badú toma a frente e exclama:

– “Rapai! Fiquei sabendo dum acontecido nessa cascata que vô falá pro cê… Coisa feia, feia, feia!”. Nisso, todos se emudeceram e voltaram o olhar para Badú, como se estivessem pedindo: “Então conte logo!”.

E Badú – parecendo já entender o sinal da empolgação dos presentes -, prossegue:

– “Esses dias um rapai me contô sobre um acontecido nessa cascata. Nói tava falando de pescá bagre, também… Mema coisa de agora… Daí ele meio que rodeou, rodeou… Como se num quisesse falá e tar.” Explicava.

Um dos senhores que acompanhava a conversa palpita ansiosamente:

– “Mataro gente lá?”

Badú arremata – cerrando os olhos e abaixando o tom de voz:

– “Que nada… coisa de Saci.”

Minha atenção – que andava um pouco dispersa devido ao canto de um azulão -, voltou-se totalmente ao assunto. “Saci?!” Pensei, achando certa graça da situação.

Porém, reparei que todos os senhores que acompanhavam a conversa mantiveram o semblante sério. Demonstravam ainda mais curiosidade e, também, um certo receio ou talvez certo respeito perante aquilo. Percebi que não seria uma história cômica – como pré-moldei de início.

Badú prosseguia:

– “Ele me disse que um conhecido dele comentô que queria i lá pescá. E bem no finar de semana era lua cheia. Aí o rapai, pro conhecido dele: Ói, mió esperá, viu. A turma vira e mexe fala que ali no bambu aparece saci na noite de lua cheia. Num foi um, ainda. Foi mai de um que já me falô…” Interpretava, gesticulando com as mãos.

E continuou:

– “Aí ele me disse que o rapai num botava fé no que ele tava falano. Lidô, lidô um monte com ele e nada. O rapai até tirô sarro, dizeno que se aparecesse ele topava co bicho, que enfrentava o Saci… Bão, aí ele num falô mai nada. Dexô queto. Num tentô mai convencê o rapai.” Contou e esboçou uma pausa, pra dar um gole na pinga e acender um cigarro.

Nisso, todos ali (inclusive eu), entretidos na história, indagaram quase que de forma simultânea: “E o que aconteceu?”. “Apareceu, mesmo?”. Badú solta a fumaça de um trago – segurando o cigarro com a brasa pro lado de dentro da mão -, e continua:

– “Se apareceu?! Escute só… Disse que o rapai foi… à noite. Acendeu um lampião, jeitô as vara tudo certinho, rumô um lugar bão pá sentá… E começô pegá, rapai. Disse que era um atrai do outro. Graúdo! E ficô nisso aí por uns 20 minuto. Pegô bem dizê uns 30… Dali um poco disse que começô levantá uma ventania no meio daquele bambuzá, rapai! Disse que o vento girava lá dentro que chegava a subiá! Malemá ele conseguia abri o zóio, de tanta poeira que levantô.” Contava empolgado e com um semblante sério.

Nisso, eu com a atenção totalmente focada na história e já imaginando a cena perfeitamente, pensava comigo mesmo: “Caramba! E não é que apareceu mesmo?” incrédulo.

E Badú finalizava:

– “Aí, rapai, ele de zóio fechado, tudo as vara voanu pá dentro d’água, lampião quebrano, aquele baruio do vento que chegava arrepiá de medo… E num é que o rapai disse que começo a senti umas pancada? Disse que parecia chinelada, rapai. O vento vinha nele e dava: Pei! Era na costa, na cabeça, nas perna… Ói, rapai. O home fez que fez, lidô que lidô até que conseguiu saí do meio da ventania e correu pra fora do bambu. Aí a hora que caiu na estrada, muntô no carro e saiu num carrerão que largô tudo pá trái. Quis nem sabê mai de nada… Daí quando chegô em casa, cendeu a luiz e oiô no corpo… era só vergão vermeio que tinha ficado pô corpo.”

Finalizou, limpando a saliva no canto da boca e com a voz ofegante, após contar a história com tremenda empolgação.

Finalizada a história, o tempo passou mais um pouco e os comentários sobre o causo do Saci foram, pouco a pouco, sendo deixados de lado para dar lugar aos comentários sobre passarinho. Meu tio e eu ficamos por ali mais um pouco e resolvemos ir embora. Pegamos a nossa gaiola, montamos no fusca verde água, nos despedimos da turma, ligamos o som com a fita de Tonico & Tinoco e partimos rumo pra casa.

No caminho, eu obviamente pensando a todo tempo na história do Saci, indaguei meu tio – meio com vergonha por não querer demonstrar estar preocupado:

– “Por acaso nós já fomos pescar nesse lugar aí que apareceu o Saci?” Falei meio rápido, me atrapalhando nas palavras, com vergonha.

Ele, olhando pelo retrovisor (porque o fusca não tinha o banco da frente – para o assoalho servir de espaço para o transporte da gaiola -, e o passageiro necessariamente tinha que se sentar no banco de trás) dá uma risada que chega a deixar o rosto vermelho e diz:

– “Umas par de vei! Mai num cheguemo a topá co Saci, né, Luca? Se quisé vortá lá numa lua cheia à noite…” E continuava a rir.

Eu, em contrapartida – percebendo o sarro que ele começou a tirar de mim -, dei um sorriso amarelo e soltei, como um mestre fajuto na arte do ilusionismo:

– “De quem era aquele canário que estava lá hoje? Bom, hein!” Tentando mudar pifiamente o assunto.

Cheguei a pensar em provar minha valentia e sugerir para irmos à cascata em uma noite de lua cheia. Mas… E se meu tio realmente topasse a ideia, né?

Não tenho medo, não. Até teria vontade deir. Mas, infelizmente, sou alérgico à ventania.

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Lucas Fraga é designer gráfico de Rio das Pedras/SP

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