Por Andriolli Costa
Logo que cheguei ao Rio Grande do Sul tomei contato com a importância e dimensão da obra de Simões Lopes Neto para o folclore gaúcho. Conhecer o trabalho do autor de Contos Gauchescos (19120 e Lendas do Sul (1913) era praticamente um imperativo. No entanto, rapidamente percebi que a tarefa não era fácil. O forte regionalismo da prosa, uma das marcas do escritor, se provou um grande entrave para quem vinha de fora.
Dois anos depois, já mais seguro, meti o peito no cancioneiro guasca e atravessei o pampa fantástico imortalizado pelo escritor na lenda do Negrinho do Pastoreio. Mais familiarizado não só com as expressões, mas com a própria rítmica do gaúcho, pude me embrenhar com mais segurança na caverna da Teiniaguá deste que é o segundo conto mais famoso do escritor: A Salamanca do Jarau.
Após uma longa jornada de enfrentamento com a narrativa original, foi com um sentimento ambíguo que me deparei com a adaptação homônima ilustrada pelo veterano Henrique Kipper (Ed. Estronho, 2015). Por um lado a alegria de reconhecer o trabalho magistral de respeito à obra simoneana. Por outro, a tristeza de ter demorado tanto para ler este quadrinho. Certamente muito da dificuldade com o texto fonte me teria sido abrandada.
A HQ é inteiramente contada com trechos do conto, com uma edição bastante eficiente que deixou muito pouca coisa de lado. Ficaram para trás as canções de Blau Nunes, o protagonista do conto, mas o resto está tudo lá. Inclusive o fatídico encontro com o Caipora, que deixou o gaúcho com um azar para tudo na vida: em briga se cortava com o próprio facão, na terra nada que plantava vingava, na doma qualquer cavalo lhe volteava.
Tudo muda quando Blau se depara, enquanto procurava o boi barroso, com o Santão da Salamanca do Cerro. Respeitador da tradição, o gaúcho – cuja avó era uma indígena da etnia Charrua – ouviu dela a lenda e sabia como se portar. O velho era um ex-sacerdote que, apaixonado por uma princesa moura transformada em lagartixa pelo próprio diabo – a Teiniaguá – abandonou a batina e vive há 200 anos no Cerro do Jarau guiando homens de alma forte e coração sereno para o interior da morreria. Lá, o desafiante deveria enfrentar 7 desafios e, se os completasse, receberia da princesa uma dádiva de seu condão mágico. E é a essa missão que o azarado Blau se presta a cumprir.
Em entrevista ao Colecionador de Sacis, Kipper contou que morou durante boa parte da infância próximo ao Cerro do Jarau, no Rio Grande do Sul, e que já desenhava a princesa desde os 12 anos de idade. Mas a inspiração mesmo veio em suas viagens pela Europa. “O mito da Salamanca é local, mas vem de uma tradição Ibérica das mouras encantadas. O oeste do RS foi colônia Espanhola antes de Portuguesa”, explica ele. O conto tem esse nome pois a Teiniaguá teria vindo da cidade espanhola de Salamanca e, ao criar no Cerro do Jarau sua morada, fez dele uma nova Salamanca.
Mas essa explicação é insuficiente. Lopes Neto, mais do que uma história de tesouros, fez da Salamanca uma história de origem. É o que se revela ao final da narrativa, quando ao final da história, o Santão e a Teiniaguá abandonam suas formas e se transformam em dois índios Charrua. Do sangue dos dois, nasceria “uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por via dessas!”. Interessante pontuar que os Charrua já estavam extintos quando a história foi escrita, mas é a eles que se deve muito dos costumes do Sul. A relação profana da Teianiguá gera o próprio povo gaúcho, que redescobria sua origem indígena (ainda refutada pelos mais ignorantes até os dias de hoje).
Uma história com tamanho simbolismo só teve a ganhar na arte estilizada de Kipper, que manteve um jogo de quadros relativamente ortodoxo quando necessário, mas que engrandece em passagens mais delirantes da narrativa. Os momentos em que a Teiniaguá ajuda o padre a escapar, com uma ventania onde redemoinhavam gritos Guarani; ou do percurso de Blau Nunes pela caverna – deparando-se com espíritos, anões e todo tipo de tentação, ficaram muito mais claros com a visualidade oferecida pela HQ. A própria forma de disposição dos recordatórios em uma das páginas, tramadas como um labirinto, ajudou a dar a ideia do vaguear do protagonista. Recomendadíssimo.
Nota: 5/5