Boitatá – Oswaldo Elias Xidieh, 1948

Nesta análise sobre o mito do Boitatá, publicada na edição de 17/12/1948 no Estadão, Oswaldo Elias Xidieh explora uma criatura que difere dos relatos dos folcloristqas. Não uma cobra, mas um boi com chifres de fogo. Xidieh foi professor da USP e da Unesp, na cadeira de Sociologia. Escreveu dois livros, “Narrativas pias populares” (1967), onde compila contos populares sobre a vida de Jesus Cristo, e “Semana santa cabocla” (1972). Xidieh faleceu em 2001.

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Por Oswaldo Elias Xidieh

Há no fabulário brasílico uma porção de lendas que têm por tema central o fogo errante ou, como querem os da cidade, o fogo fátuo. No folclore de diversos países, o mesmo assunto é verificável e, não seria exagero da nossa parte afirmar que, no mundo dos estudiosos das ciências sociais, é ele retomado e apresentado sob diversos aspectos: filológico, literário, folclórico, sociológico, etc. E é bom que assim se proceda: haverá sempre uma palavra nova a ser dita ou um novo modo de “ver” o ser proposto.

O nosso fogo fátuo tem o nome indígena de Boitatá e surge nas histórias populares como labareda, bola ou língua de fogo, oscilando ao vento, pela noite adentro, sobre os campos. Andeja de cá para lá. Às vezes fica boiando imóvel, como um floco de luz, um pouquinho acima de chão, mas de súbito, como que animada por um sopro interno, reverbera, estremece e se alonga num nervoso braço de chama amarelo-avermelhada. Por isso os índios lhe deram o nome de cobra de fogo.

Não sabemos qual era o comportamento dos índios em relação ao boitatá e seria por demais arriscado admitir que o seu modo de sentir medo fosse exatamente igual ao nosso. Fetichistas e animistas que eram, suas crenças versavam quase que absolutamente sobre as coisas da natureza e no que eles supunham continuá-la em outro plano.

Nesse mundo, do qual eles mesmos, como homens, faziam parte, encontravam os meios naturais, ou tidos como tais, para superar o mal, imediatamente. Seu modo de sentir medo, de ter medo, pelo menos devia ser, portanto, bem diferente daquele que temos e sentimos. O nosso medo, em matéria religiosa, está estruturado na noção do pecado, no Deus Pai e Único, no purgatório, no inferno, nos espíritos diabólicos, nas potências malignas, no extraterreno – elementos estranhos à humanidade e a natureza, componentes de um outro mundo que se opõe para o bem ou para o mal a este em que vivemos. E as coisas que poderiam amedrontar os índios eram imediatamente conhecidas por eles, faziam parte do seu universo…

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Oswaldo Xidieh

O índio via no boitatá, simplesmente, uma das diversas formas que a mãe natureza pode tomar para velar pelas suas criaturas. Caapora vigia e protege os animais; Jurupari ampara os vegetais; os caruanas ajudam a esconjurar os malefícios: boiuna, com todas as suas ruindades, age como qualquer cobra ou qualquer onça, não leva ninguém para o inferno: o boto vive nas águas dos rios e gosta de moça e, só por esse motivo, pela sua humanidade. Já basta para que o distingamos de qualquer demônio cristão; curupira e menino peludo, de cabelos vermelhos, assexuado, pés virados para trás, às vezes ruim de espantar e noutras bonzinho, só pela sua mobilidade afetiva anula qualquer linha fatal, essas características essenciais dos malditos do cristianismo e das crenças orientais.

O medo do índio devia ser, pois, diferente. Assim como os etnógrafos costumam catalogar e dissecar, por exemplo, o conceito de guerra entre os botocudos, a moral sexual entre os carajá e, enfim, a mentalidade do homem primitivo, por que é que não se preparavam turmas de pesquisadores para averiguação da capacidade emocional, isto é, da vida afetiva dos índios? Queremos crer que semelhante trabalho viria iluminar até mesmo os mais íntimos processos afetivos da alma do homem civilizado.

Para o medo do caboclo e do campeiro, boitatá é uma coisa do outro mundo, uma alma penada que poucos prejuízos podem causar: só serve mesmo é para assombrar e tirar o juízo das pessoas. Não é tão maléfico quanto a mula sem cabeça que manoteia e dá coices, a pisadeira, que sufoca e estrangula; o licantropo, que morde e contagia suas vítimas; a porca-dos-sete-leitões, que enlouquece os assombrados… Há um pormenor que reforça o terror a respeito dessa aparição: boitatá persegue quem lhe passa por perto; na verdade o fogo errante é sensível a qualquer deslocação de ar.

Os nossos filólogos já estabeleceram o “pedigree” da palavra boitatá e, como são muitos e muitas as suas comunicações a respeito, de maneira que já se transformaram em dados de conhecimento geral, não citaremos coisa alguma de “mboi-tatá”, “embú-tatá”, “mbu-tatá”, “ebaê-tatá”, cobra de fogo; mas o que nos interessa é o mito, a sua posição, o seu valor e seu modo de ser em diversos lugares do Estado de S. Paulo.

Em todo o Norte e pelo Sul, na Araraquarense, na Paulista e na Mogiana, compreendendo as zonas rurais de Guararema a Guaratinguetá, de Araraquara a Ururaí de Socorro e arredores, Boi-tatá é sempre a tradicional bola de fogo, o “fogo-nada”, errante e sobrenatural, e, dessa maneira, o mito mantem-se quase intacto. Raras contribuições locais que não se propagam aparecem aqui e ali: – “atrás do fogo vem Satanás”, “é a alma penada de fulano ou de beltrano”, etc.

No entanto, o mito e a respectiva crendice se transformaram radicalmente no litoral do nosso Estado, litoral norte. Não vamos pretender, de modo algum, generalizar o fato por todo o litoral e pelas ilhas que não tivemos a felicidade de visitar, mas no Bairro do Convento, ou Bairro de São Francisco, cinco quilômetros antes de São Sebastião, no caminho de quem vem de Caraguatatuba, o caso do Boitatá é muito diferente e a crença é esta:

São Pedro e Jesus, por Oswaldo Xidieh

São Pedro e Jesus, por Oswaldo Xidieh

– “Existe um boi que não é coisa dos vivos; é um boi assombração que em certos dias da semana aparece à beira das estradas para assustar e atormentar as pessoas que por ali passaram. É grande e escuro e traz em cada chifre uma tocha de fogo que, às vezes, viram numa só e grande labareda. Seus urros são feios e, quando corre, seus cascos batem no chão como se fossem de ferro. Costuma ficar escondido perto do cemitério e gosta de aparecer nos dias de festa, altas horas da noite, para assombrar os retardatários que regressam às suas casas”.

No dia 6 de janeiro de 1947, quando assistimos à festa de São Benedito naquele bairro, tivemos a oportunidade de verificar o horror que a aparição provoca entre os caiçaras. Assim que terminou a festa, as famílias regressaram aos seus ranchos. Subitamente, em tropel e gritaria, uma delas voltou espavorida pedindo pouso na vila. Depois que contaram o que lhe havia acontecido, não lhe faltou pousada: – “Logo na saída da vila, um pouco antes do cemitério, o boi tinha aparecido, bufando, escavando o chão com suas patas de ferro e soltando línguas de fogo pelos chifres… e não tiveram coragem de continuar”.

A uma pergunta nossa, responderam: – “De certo que é um boi e dos bem grandes e escuros. Não mata ninguém, mas persegue a gente até tirar o fôlego”.

– “Mas é mesmo um bicho?” – Insistimos

– “Sim, é um bicho boi, por isso tem o nome de boi de fogo”.

– “É algum penante ou é coisa ruim mesmo?”

– “Nós pensamos que seja a akma de X (um fazendeiro do 2ª império, prepotente, malvado e mandigueiro, cujo cadáver, dizem, foi levado pelo diabo que deixou, em seu lugar, no caixão, um cepo de bananeira e cuja casa na serra está hoje entregue aos demônios e às almas penadas). Mas antes há havia um boi de fogo”.

Um outro caiçara contou, dias depois, que o animal fantasma era só uma amostra das “artes” de um certo macumbeiro. Nada mais colhemos a respeito.

Eis pois o que foi feito do Boitatá: um animal, um boi tal como o nome o sugeria. Deixou de ser a cobra de fogo para ser o boi da superstição cabocla, isto é, caiçara.

Dessa maneira, a zoolatria se enriqueceu com um novo mito – coisa muito importante, muito interessante para o folclorista e um novo motivo de pensar se propõe a todos que levam a sério o estudo da gênesis dos mitos e das religiões.

Há entre as teorias que tentam explicar a origem dos mitos uma que indica a palavra arcaizada, de significado perdido, de capacidade de expressão superada de som evocativo, sugestivo ou inusitado, como base ou ponto de partida para a aparição dos elementos que constituem as crenças. Não vamos, dado o tipo de trabalho que ora elaboramos, entrar no complexo e comprometedor mecanismo dessa teoria. De passagem, anotamos que ela é, atualmente, uma das mais desautorizadas pelos críticos das ciências sociais, principalmente pelos antropólogos contemporâneos. Não queremos também entrar num terreno que é movediço e onde, portanto, qualquer passo seria incerto e qualquer tomada de atitude mais cerrada, uma desonestidade até. Contentamo-nos em frisar, sem mais pretensões, que a palavra deu origem ao mito que acabamos de relatar.

Objetar-se-ia: é um fato muito isolado. Responderíamos: cabe à pesquisa sistemática, desinteressada, direta e demorada o papel de destacar na vida social outros elementos que corroboram na possibilidade de também a teoria filológica poder servir, sob alguns aspectos, às ciências sociais e antropológicas.

Ninguém é obrigado a aderir a esta ou aquela teoria, mas ninguém que se preze pode fugir à obrigação moral de verificá-las. Serão elas, as teorias, sempre uma véspera da verdade; devem ser consideradas com respeito e mesmo amor, dado o significado derradeiro: instrumentos da pesquisa do homem sobre o universo. E só com o trabalho autenticamente científico é que podemos abordá-las para destruir ou confirmá-las.

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