Saci para quê? Considerações sobre o Dia do Saci

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O saci na Festa do Folclore de Nova Petrópolis/RS

Publicado originalmente em 31/10/2015
Editado em 31/10/2018

Por Andriolli Costa

Como estudioso das mídias e pesquisador de cultura popular, acompanho com especial interesse ano após ano o embate entre amantes do Dia das Bruxas e defensores do Dia do Saci. Discussão essa que, como várias no âmbito das redes sociais, não leva a outro lugar que não a fadiga mútua. As postagens, memes e acusações se seguem até o ponto em que as pessoas simplesmente se cansam uma das outras e desistem de argumentar.

Este não é mais um texto de mera renúncia ao Halloween. Não busca fazer uma exaltação ufanista, muito menos se apegar a uma infrutífera discussão sobre o anglicismo que cerca nosso dia a dia. Isso não é o importante. A verdadeira chave da questão é perceber que o Dia do Saci não é mera alternativa tupiniquim ao Dia das Bruxas, mas um objeto de natureza totalmente diversa. E é essa natureza que será evidenciada aqui.

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Saci Urbano, de Tiago Vaz

Folclore é Resistência

Desde que surge o movimento folclorista, na esteira do Romantismo do século XIX, houve a preocupação com  preservação. O próprio William John Thoms que criou o neologismo Folk Lore acreditava que era preciso agir para a salvaguarda e o registro das tradições populares antes que a locomotiva – o cavalo de ferro – a tudo solapasse sobre seus cascos. Em uma das cartas da Comissão Nacional de Folclore, que convidava Rachel de Queiroz para suas frentes, a preocupação era que em poucos anos, “nosso folclore seria coca-cola”. Era preciso fazer alguma coisa.

A tensão entre tradição e modernidade sempre esteve lá. Quanto a isso cabe atenção: folclore é dinâmico, não estático. Está sempre se transformando e acompanhando as sociedades. A princípio, então, não seria preciso essa preocupação com o desaparecimento, correto? Se sumiu é por que não faz mais sentido. Não é bem assim.

Isso seria ignorar que, primeiro, a globalização traz consigo diálogos fantásticos que nos permitem a identificação com grupos que não estão fisicamente próximos aos nossos. Porém, lastro disso é o Imperialismo, que coloniza imaginários passando a imagem de que o local é ruim, inferior, ignóbil. Até que ponto o diálogo é verdadeiro se não são ambas as partes que tem voz? É esse “relacionamento abusivo” cultural que deve ser observado.

Em segundo, é preciso lembrar que há um influxo consciente das instituições (governos, igrejas, grupos empresariais) de formar, deformar e controlar tradições para que dialoguem com os seus discursos. Para ficar apenas na questão dos mitos, podemos pensar em como o saci é descrito como demônio e repudiado por inúmeras escolas de orientação cristã – que chegam a rasgar páginas de livros didáticos que falam de folclore para não expor as crianças a esses “seres infernais”. Também podemos pensar em como campanhas ambientalistas tratam o saci como mais um “protetor da natureza” genérico, despindo-o de todo o simbólico anárquico e de liberdade.

Quando não conhecemos e não falamos de nossas tradições, ficamos a mercê dos mitos dos outros. O trabalho dos folcloristas é chamar atenção para isso, desvelando os preconceitos que vem com o desconhecimento. Mostrando que folclore é identidade e resistência.

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Folclore é Afeto

Quando escrevi a primeira versão deste texto, em 2015, me espantava como o bipartidarismo político havia tomado todas as discussões nas redes sociais – inclusive as da disputa entre Dia do Saci e Halloween. Bastava uma rápida olhada nas mensagens compartilhadas para compreender. As bem-humoradas artes da Sociedade dos Observadores de Saci — “Raloim? Só com carne seca!” — dividiam espaço com mensagens que berravam: “Halloween é o cacete! Viva a cultura nacional”. Isso sem falar nos comentários que taxavam de alienados ou antipatriotas aqueles que queriam celebrar a festa estrangeira. A antipatia foi compreensível.

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Arte de José Ohi

Compreendo que as mensagens mais enfáticas em defesa do Dia do Saci vem da vontade de legitimar uma ideia frente a outra, hegemônica e internalizada. Ainda assim, com tantas reações contrárias, será que é este o caminho? Não acredito que seja possível convencer o outro a mudar de ideia — ou ao menos a simpatizar com a causa — agredindo e desqualificando seus comportamentos. A postura mais natural é que o interlocutor reaja defensivamente, e foi o que aconteceu.

Muitos retrucam dizendo que Halloween não é cultura americana, mas sim uma celebração do Samhain celta. Mas qual destas festas se celebra por aqui? A pregnância simbólica do Samhain praticamente desapareceu da celebração estadunidense, que se tornou uma tradição própria – ligada ao comércio e a cultura pop. Já é uma outra coisa. E a tradição das abóboras, também tão famosa nos EUA? Mais uma tradição celta, mas que se impregnou fortemente na península ibérica. Tanto que em Portugal , era comum escavar abóboras e desenhar rostos nela, representando o monstro “Coco” – um papão que assombrava as casas, e uma das inspirações para a nossa Cuca. Por aqui essa informação é totalmente ignorada, e só se fala em Jack o’ Lantern.

45097809_1160611777427619_630298429351788544_oPercebemos assim que o Halloween vem de um desejo de participação, de estar integrado em uma cultura tão popularizada pela mídia. Querem comprar doces temáticos, ir a lojas de fantasias, imitar monstros do cinema. E não há nada errado nisso. O Dia do Saci tem uma outra lógica: pega o gancho em uma data para convidar as pessoas a conhecerem mais sobre nós mesmos. Nosso folclore ainda não foi mercantilizado, então as celebrações exigem muito mais do artesanal, do desejo de compartilhar o amor pelos nossos mitos.

Já vi muita gente dizendo que para isso já existe o Dia do Folclore. Para quê um dia do saci? Oras, seria como dizer que não é preciso um dia de São João se já existe um dia de todos os santos.

Cabe lembrar; o Dia do Saci não é um feriado nacional. A proposta de sua criação ocorreu em 2003, com dois projetos de lei que não foram aprovados. No entanto, de lá para cá, a data já foi instituída como feriado municipal em dez municípios, principalmente no interior de São Paulo. Isso não impediu que várias outras cidades também passassem a promover suas próprias brincadeiras em homenagem ao diabrete brasileiro. Esse é o espírito. Saci não é das gostosuras, mas das travessuras.

Aquele que quer se vestir de Fantasma ou Vampiro e pedir doces na rua tem tanto direito de fazer isso quanto quem deseja celebrar com um gorro vermelho na cabeça. O Dia do Saci não é — ou não deve ser — um contra-ataque ao Halloween, mas algo de natureza diferente e que pode muito bem coexistir. O desejo de festejar não deve ser imposto a ninguém. Se não for algo espontâneo, vira teatro, vira encenação. É pelo afeto, não pelo ódio, que traremos cada vez mais pessoas para a “equipe saci”.

Links:

  • Quer conhecer as origens do mito do saci e o que significam seus símbolos? Escute nosso podcast (ou leia o roteiro).
  • Quer ter ideias inovadoras para trabalhar folclore em sala de aula? Veja aqui.
  • Saci era Saduci, um príncipe africano? Não, isso é falso. Leia aqui.
  • Saci era “indiozinho” com duas pernas e rabo? Não é bem assim. Leia aqui.

Andriolli Costa, 29 anos, é natural de Mato Grosso do Sul. Jornalista e doutorando em Comunicação, é membro número 930 da Sociedade dos Observadores de Sacis. Desde 2015, gerencia o perfil e a página do Colecionador de Sacis.

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